Afinal, quem são os novos intelectuais orgânicos do status quo?
Walter Marcos Knaesel Birkner*
No artigo anterior, tratei do patrimonialismo como desgraça institucional brasileira e dos privilégios corporativos das elites estatais que parasitam o orçamento público sob o manto da legalidade e da justiça democrática (sic). Apontei, ali, não apenas os mecanismos que permitem essa apropriação imoral do bem público, mas também o silêncio eloquente de parte significativa dos nossos intelectuais — especialmente os da sociologia universitária, a quem denomino, paradoxalmente, de os “atuais intelectuais orgânicos”.
A expressão “intelectual orgânico” foi formulada pelo filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) para descrever aqueles intelectuais que não apenas produziam ideias, mas eram os agentes da hegemonia cultural das classes dominantes. Essa hegemonia era mantida principalmente pela conquista do consenso social. Os intelectuais orgânicos eram, portanto, os engenheiros do consentimento, encarregados de difundir visões de mundo que naturalizassem as estruturas de dominação existentes, gerando conformidade através do controle simbólico.
No campo da moral, da educação, da imprensa, da política e da ciência, esses intelectuais difundiriam os valores, ideias e narrativas que favoreceriam a manutenção da ordem. Em outras palavras, seriam os disseminadores da ideologia burguesa, tanto intelectuais, quanto políticos e trabalhadores em funções de coordenação e supervisão, cooptados pelo sistema. Ao contrário dos intelectuais “tradicionais”, que se julgavam independentes em relação às lutas sociais, os “orgânicos” seriam os disseminadores dos interesses da classe dominante e, portanto, mantenedores das relações de dominação.
Gênio da raça, Gramsci fez a exegese da obra de Marx e mudou o rumo da prosa ao afirmar que a revolução da classe trabalhadora não viria pelas armas, mas pela palavra. Então, era necessário agir exatamente como os intelectuais orgânicos do capitalismo: ocupar os espaços nas universidades, nos meios de comunicação e nas escolas, além das estruturas do Estado, a fim de difundir as ideias socialistas e, com perseverança, gerar uma nova hegemonia cultural e simbólica. A propósito, finalmente, jovens conservadores, orientados pelo filósofo Olavo de Carvalho, compreenderam isso – a direita começou a ler.
Mas a história é cheia de ironia: eis que a estratégia concebida para subverter a hegemonia burguesa foi assimilada por novos grupos que, sob o discurso do tal “pensamento crítico” a favor da emancipação dos trabalhadores e dos excluídos, acabaram por construir uma hegemonia própria, não menos excludente, e resistente à autocrítica. O paradoxo atual é que, o que Gramsci identificou como o serviço “limpo” em favor das elites tradicionais, é hoje replicado pelos “herdeiros” do seu pensamento. São os produtores do conhecimento sociológico hegemônico no Brasil, a favor do status quo das elites patrimonialistas.
Intelectuais que vivem das benesses do Estado — via bolsas, salários, editais, cargos em conselhos, presença garantida em bancas, festivais acadêmicos e políticas editoriais — passaram a ocupar o papel de fiadores da nova hegemonia corporativa estatal. Sob o manto do pensamento crítico, da defesa da democracia, da diversidade e da inclusão, constroem um discurso que desvia o olhar do patrimonialismo, reconfigurando a velha hegemonia sob novas palavras de ordem. Não combatem os donos do poder, os escondem — apenas os rebatizam e, por vezes, até os protegem.
Afinal, quem são os novos intelectuais orgânicos do status quo? São professores universitários, pesquisadores de centros públicos, autores de livros e pareceristas de editais que, em sua maioria, vivem no interior do próprio Estado que deveriam submeter à crítica radical. Muitos atuam como legitimadores das corporações patrimonialistas — juízes, promotores, altos servidores, militares, políticos e seus aparelhos auxiliares — mas fazem isso de forma indireta, silenciando sobre os privilégios que sustentam esse sistema.
Os atuais intelectuais orgânicos repetem fórmulas e conceitos importados, muitos deles anacrônicos, outrora válidos, da Escola de Frankfurt ou dos gauchiste da França, como se depois de meio século ou um século inteiro nada tivesse melhorado. Entoam discursos morais contra o mercado, contra o “neoliberalismo” ou contra o Ocidente, enquanto evitam cuidadosamente o enfrentamento do verdadeiro núcleo do problema brasileiro: o Estado sequestrado por elites corporativas que eles próprios integram ou de quem dependem material e simbolicamente.
Abandonaram a dialética, que sempre foi o coração do pensamento marxista — o confronto real entre tese, antítese e síntese, entre o que é e o que deveria ser. Trocaram o embate entre forças sociais concretas pela repetição de narrativas ideológicas anacrônicas. Negam-se a aplicar a crítica estrutural aos sistemas que sustentam seus próprios privilégios. E ainda assim chamam o que produzem de “pensamento crítico”. Mas como pode ser crítica uma produção que ignora o poder real, que não toca nos interesses das elites estatais? Esse tal “pensamento crítico” não passa de uma crítica domesticada, funcional ao status quo, blindada contra o incômodo da autocrítica e impermeável à renovação intelectual.
E assim, sob a retórica do engajamento, da inclusão e da crítica social, seguem os atuais intelectuais orgânicos protegendo o velho Estado — esse mesmo que concentra renda, reserva privilégios e drena recursos públicos em nome de uma suposta defesa da democracia e do bem comum. Usam o vocabulário da resistência para garantir a permanência das estruturas que deveriam desconstruir. Criticam o capital, mas omitem o conluio entre o poder político e os seus próprios pares. Chamam isso de pensamento crítico. A pergunta é: crítico a favor de quem? E crítico contra o quê?
Marx estava certo ao afirmar que o Estado é o representante dos interesses da classe dominante. Errou ao superestimar a ira revolucionária da classe trabalhadora. Gramsci acertou ao explicar a conformidade da classe trabalhadora, mas errou profundamente ao confiar a tarefa revolucionária aos intelectuais, filósofos e sociólogos da emancipação humana. E prefiro acreditar que sua fé tenha sido maior que sua genialidade nesse aspecto, e não tenha sido um cínico igual a eles.
