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Pauliceia Desvairada

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E o centenário da Semana de Arte Moderna

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Bom seria se, em 2022, ao invés de estarmos inseridos num panorama de conflito bélico e pandemia, estivéssemos comentando e publicando as proezas de um grupo de jovens intelectuais e ousados que escandalizaram a sociedade brasileira, como ocorreu em 1922. Eles organizaram uma semana de exposições artísticas, declamações de poemas e de narrativas, cujas características sui generis até hoje exigem análises.

Há cem anos, o panorama histórico do Brasil e do mundo também era conturbado, porém menos cruento do que agora. Em nosso país, a jovem República vivia enraizada no sistema coronelista, e alguns escritores e artistas plásticos, cientes disso e contrários à manutenção dos arcaísmos, se aventuraram a mostrar que as novidades podem ser frutíferas. Em suma, o lema, que hoje já virou clichê, era “Brasil, um país do futuro”, ou seja, queriam mostrar, em suas obras, a modernidade citadina, o barulho e furor das máquinas e sua simbiose com o homem.

Mario de Andrade é um grande expoente dessa manifestação, e com seu livro “Pauliceia Desvairada”, evidenciou as características mais marcantes do período, como, por exemplo, a crítica aos burgueses, como vemos no poema abaixo:

Ode ao Burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar… – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

Como é perceptível nos versos acima, o poeta estava alinhado com a conjuntura da década de vinte do século vinte, a saber, a discussão dos problemas trabalhistas e a manutenção da classe burguesa que, na grande maioria das vezes, é fútil e exploradora. Isso desmitifica a ideia de que os modernistas eram escritores desconexos, sem paralelo com a historicidade.

Inserido no processo de acelerada modernização da cidade de São Paulo, proveniente do surto industrial financiado pelo capital cafeeiro e pela chegada de imigrantes, Mario de Andrade desvela esses paradoxos de futurismo x tradicionalismo, como fica claro nesses versos de “Paisagem”, que, ademais, traduzem a miscelânea dos novos estratos sociais, a saber, a marginalização dos antigos escravos e a incipiente classe operária, enquanto se preserva o status quo das oligarquias: “Os caminhões rodando, as carroças rodando/ Rápidas as ruas se desenrolando,/Rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos/ E o largo coro de ouro das sacas de café!”

Além disso, o prefácio, escrito pelo próprio autor, fornece uma diretriz para as inovações, alertando o leitor de que, embora “desvairada”, há muita informação recôndita e alicerçada nas contradições da cidade que dá nome à obra. O fluxo da consciência também é um mote, isto é, a libertação, sem convencionalismos, do subconsciente, sendo uma escrita automática que, logo, será aprimorada pelo intelecto.

Depois de um século da declamação de “Ode ao burguês” e da vontade de rumar ao futuro de um país altamente capacitado, ainda permanecem os ideais dos pioneiros daquela escola literária. Dos inúmeros assuntos que a Semana de Arte Moderna suscita, o mais pertinente para nosso momento é se assemelhar aos idealizadores daquele outrora, e, do mesmo modo que seus participantes, continuar elucidando, em seus mais díspares desdobramentos, nosso exuberante Brasil a partir do prisma artístico engajado.

(ANDRADE, Mario. Pauliceia Desvairada. 2 ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2017)



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