Terceirização da responsabilidade permite que figuras poderosas desvinculem suas práticas das consequências humanas
Na última semana, o cantor Leonardo foi incluído na “lista suja” de trabalho escravo, após uma operação de fiscalização em sua fazenda em Goiás. As autoridades encontraram seis trabalhadores em condições desumanas, expostos a riscos à saúde e sem infraestrutura básica. Outros 12 trabalhadores foram localizados sem registro em carteira. Leonardo negou responsabilidade, alegando que a área estava arrendada para terceiros. No entanto, as autoridades o incluíram na lista por conta da falta de manutenção do local e das condições degradantes.
A inclusão de figuras públicas como Leonardo nessa lista traz à tona um fenômeno social mais amplo: a normalização da exploração do trabalho, que pode ser vista sob a ótica da “banalidade do mal”, conceito desenvolvido por Hannah Arendt. Arendt, ao analisar o julgamento de Adolf Eichmann, destacou que o mal pode se manifestar de maneira banal quando se esconde sob a burocracia e a obediência a ordens. O mal, nessas circunstâncias, não é cometido por monstros evidentes, mas por indivíduos que cumprem funções dentro de um sistema que despersonaliza suas vítimas. Aplicando esse conceito à exploração do trabalho, vemos como práticas abusivas são naturalizadas como parte de uma engrenagem econômica, onde a desumanização dos trabalhadores é uma consequência invisível para muitos envolvidos.
Na exploração das relações de trabalho, a banalidade do mal se revela na forma como a exploração de mão de obra, muitas vezes em condições análogas à escravidão, é aceitável ou até justificada em nome do lucro. No caso da inclusão de Leonardo na lista de trabalho escravo, a alegação de desconhecimento sobre as condições dos empregados que viviam em sua fazenda é, em si, uma manifestação dessa banalização. A terceirização da responsabilidade permite que figuras poderosas desvinculem suas práticas das consequências humanas, como se as vidas prejudicadas fossem um subproduto inevitável do modelo de negócios.
Hannah Arendt nos alerta que a verdadeira ameaça não está apenas nos atos de opressão evidentes, mas no sistema que transforma esses atos em rotina, onde as pessoas envolvidas não questionam ou assumem as responsabilidades de suas ações. No campo das relações de trabalho, isso se traduz em uma aceitação generalizada da precarização, das jornadas abusivas e das condições degradantes, como se fossem consequências naturais e inevitáveis da economia de mercado. Os empregadores, muitas vezes, veem os trabalhadores como meros recursos, desprovidos de seus direitos e dignidade.
Essa banalização da exploração reflete um problema moral profundo. O sistema capitalista, ao priorizar o lucro acima da dignidade humana, permite que figuras públicas e grandes empresas se envolvam em práticas ilegais sem que haja uma responsabilização ética clara. A sociedade, por sua vez, muitas vezes assiste a essas práticas com indiferença ou conivência, criando um ciclo no qual a exploração se perpetua, desprovida de empatia e humanidade. E, se reclamar, ao invés de melhores condições de trabalho, não se tem trabalho algum. E isso normaliza situações que não deveriam existir.
A questão da “banalidade do mal” nas relações de trabalho também se conecta com a maneira como as estruturas legais e institucionais lidam com esses abusos. Embora haja legislação contra o trabalho escravo, a existência de figuras públicas na “lista suja” revela que essas práticas persistem e que o sistema falha em proteger os mais vulneráveis. Como Arendt demonstrou, a legalidade nem sempre anda de mãos dadas com a moralidade. O mal, em sua forma banal, se perpetua quando as estruturas que deveriam garantir justiça tornam-se cúmplices do processo de exploração.
A aceitação dessas práticas no Brasil contemporâneo, como no caso de Leonardo, é uma evidência de como a sociedade lida com a exploração de forma naturalizada. A banalidade do mal se reflete nas inúmeras situações em que trabalhadores são tratados como peças descartáveis em um sistema que valoriza o ganho financeiro acima da vida humana. Essa condescendência generalizada com o sofrimento alheio, camuflada sob justificativas econômicas, é o que torna possível a perpetuação de relações de trabalho desumanas.
Nessa perspectiva, pode-se partir do pressuposto de que se apresenta como fundamental refletir sobre como a banalização da exploração do trabalho reflete uma erosão dos valores éticos na sociedade. A noção de Arendt serve como um lembrete de que o mal não é apenas um ato de grande vilania, mas pode ser o resultado de uma série de decisões aparentemente pequenas, mas profundamente desumanizadoras.
Para romper esse ciclo, é necessário que haja uma responsabilização ética e moral de todos os envolvidos, desde figuras públicas até gestores e consumidores, que muitas vezes ignoram os custos humanos do trabalho exploratório, e não apenas dos que ganham as manchetes dos jornais, mas daquelas explorações do dia a dia, que aos poucos vamos aceitando e normalizando ao nosso lado como parte da rotina.
Reconhecer a humanidade dos trabalhadores e garantir condições dignas de trabalho é um passo crucial para enfrentar a banalidade do mal no cenário atual. Isso requer uma mudança profunda na maneira como enxergamos o trabalho e os direitos humanos, priorizando a dignidade e o bem-estar sobre os interesses puramente econômicos. O ser humano é mais do que simplesmente um trabalhador.
Quando ouvir de seu patrão a expressão de que a empresa é uma família, lembre-se de que a origem do termo “família” vem de “famulus”, significando “escravo doméstico”, ou, ainda, designando o conjunto de escravos de um mesmo senhor. Só bem mais tarde o termo adquiriu o sentido que temos hoje. Assim, que não se romantize as relações de trabalho e que não se normalize nenhuma situação de exploração.
O trabalho é necessário em nossa configuração atual para podermos pagar as nossas contas, mas o empresário não está te fazendo um favor. Você trabalha. Você é pago por isso e vai para casa para poder conviver com as pessoas com as quais decidiu compartilhar a existência. A qualquer sinal de turbulência, o patrão encontrará fácil outros trabalhadores para lhe substituir, o que não aconteceria em uma família no sentido contemporâneo do termo, apenas aconteceria em uma família em sua significação original.

