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“O Leitor” reflete sobre a desumanidade

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Além da descrição do romance entre os protagonistas, os motivos vão se desvelando pouco a pouco

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Um dos aspectos mais pertinentes da leitura literária é ampliar nosso paradigma histórico, isto é, nos levar a pensar e contestar detalhes até então desconhecidos.

O extermínio dos judeus pela nefasta ideologia nazista é bastante comentado e analisado em diversos contextos. Porém, esse regime Totalitário não vitimou apenas os mortos nos campos de concentração e traumatizou gerações de seus descendentes, pois há, também, inúmeras vítimas indiretas. Dentre elas estão algumas pessoas que aparentemente serviam aos preceitos de Hitler. É isso que o enredo de “O Leitor”, de Bernhard Schlink, nos leva a refletir.

Um sistema que persegue e assassina pessoas por considerar sua etnia inferior é horrendo, e, de tão perverso, quase inacreditável para quem não o vivenciou.  E um regime político que impede que certas pessoas tenham acesso ao letramento mostra outra face da segregação e do extermínio, pois suas consequências, muito embora se manifestem mais lentamente, também são atrozes.

Para melhor compreensão de minha premissa, imagine, leitor, ser uma mulher analfabeta em meados do século vinte, e ter que se sustentar sozinha. Amplie um pouco mais a imaginação e reflita sobre os desdobramentos sociais avassaladores que a incapacidade de dominar o código alfabético produz. Sem essa habilidade se é impedido de acessar um sem-número de informações e de participar de vários contextos. Isto é, sendo iletrado a visão de mundo e as oportunidades são esmagadoramente menores, ao ponto de ser possível participar de crimes sem ter consciência e assumir a culpa pelo que não praticou.

É isso que ocorre com a personagem Hanna, uma vez que, sendo iletrada, e sentindo uma vergonha enorme por isso, recusa uma promoção do trabalho de cobradora de metrô – em que a alfabetização não era requisito – para o de secretária no escritório da companhia. Por isso, o único posto que restava, ou seja, que admitia mulheres e no qual o domínio alfabético não era condição sine qua non, era ser guarda de um campo de concentração.

No enredo de Bernhard Schlink, além da descrição do romance entre os protagonistas, os motivos vão se desvelando pouco a pouco. Hanna e Michael têm uma breve relação amorosa durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de muitos anos, se reencontram, ele, estudante de direito fazendo estágio no tribunal, ela, réu acusada de assassinar um grupo de judias. Enquanto acompanha o julgamento, Michael vai juntando as peças para entender o que se passara com Hanna:

Hanna não sabia ler nem escrever. Por isso pedia que lessem para ela em voz alta. Por isso confiara a mim, em nossa viagem de bicicleta, as tarefas de ler e escrever e tinha ficado fora de si naquela manhã, no hotel, ao achar meu bilhete, pressentindo minha expectativa de que ela entendesse e temendo assim revelar seu segredo. Por isso tinha recusado a promoção na companhia de bondes; sua fraqueza, que podia ser escondida como cobradora, teria ficado evidente quando treinasse para ser motorneira. Por isso tinha recusado a promoção na Siemens e torna-se guarda. Por isso, para opor-se à confrontação com a perícia, confessara ter escrito o relatório. Teria sido por isso que ela se pôs a perder, falando durante o processo? Como não tinha lido o livro da filha, nem a acusação, não pudera ver as chances de sua defesa nem preparar-se convenientemente? Será que enviara por isso as suas protegidas para Auschwitz? Para mantê-las caladas, caso notassem algo? E será que por isso tinha escolhido as moças mais fracas para serem suas protegidas? Por isso? O fato de se envergonhar por não saber ler nem escrever, de confundir-se para não se expor, eu podia entender […] Mas poderia a vergonha de Hanna por não saber ler nem escrever ser o motivo de seu comportamento no processo e no campo de concentração? Por medo de ser desmascarada como analfabeta? (SCHLINK, 2009, p. 147).

O questionamento acima é feito para todos nós, leitores, e, sobretudo para todos que, direta ou indiretamente, são herdeiros do iníquo legado nazista. A geração posterior aos envolvidos foi a que mais sofreu com a carga traumática e mnemônica, como é o caso da personagem Michael:

Muitas vezes penso que o confronto com o passado nacional-socialista não era o fundamento, mas apenas a expressão do conflito de gerações que era possível perceber como a força motora do movimento estudantil. A expectativa dos pais, de que toda geração tem de se libertar, era facilmente liquidada pelo fato de esses terem falhado, no Terceiro Reich ou mais tarde, após o seu fim. Como é que aquelas pessoas, que foram criminosos nacional-socialistas, ou espectadores, ou que desviaram seus olhos, ou que, depois de 1945, tinham tolerado o convívio com os criminosos, chegando mesmo a aceitá-los na época – como é que aquelas pessoas podiam ter algo para dizer a seus filhos? Mas, por outro lado, o passado nacional-socialista também era tema para os filhos que não podiam ou não queriam censurar os pais. Para minha geração de estudantes, o conceito de culpa coletiva era uma realidade vivida, não importava o que nele houvesse de verdade ou não, moral ou juridicamente (SCHLINK, 2009, p.185).

Como vemos, a narrativa, que recebeu versão cinematográfica e que tem um desfecho bastante surpreendente, direciona o leitor para refletir sobre a desumanidade, o racismo, o preconceito e as manifestações segregadoras. O que a torna uma obra-prima, a diferenciando da maioria dos enredos sobre o Holocausto, é que, para além dos temas supramencionados, há o acréscimo das consequências do analfabetismo, mostrando, na desenrolar da história, a veracidade de um clichê tão repetido, mas pouco compreendido, ou seja, de que “conhecimento é poder”. No caso citado, seria uma chave que poderia ter salvado vidas e impedido uma condenação à prisão perpétua.     




  (SCHLINK, Bernhard. O Leitor. Rio de Janeiro: Record, 2009).







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