domingo, 5

de

maio

de

2024

ACESSE NO 

O guardamento do Leutério

Últimas Notícias

A notícia se espalhou como bando de quatis

- Ads -

Fernando Tokarski*

Deu no rádio que Leutério Gonçalves morreu às três da tarde. Mas como? Assim do nada? Ainda ontem foi visto bebericando uns tragos e depois empurrando a velha bicicleta rumo à sua casa. Gostava de andar assim, escorando o corpo tonto naquele veículo capenga marca Göricke havia uns quarenta anos. Trabalhava feito um condenado siberiano e bebia feito um russo indomável. Até que morreu, viveu seus dias assim. Felizmente morreu de morte morrida. Nada de morte matada. Até porque Leutério nuca tapeou sua mulher, muito menos o alemão reinento do bar da esquina.  

Então se deu no rádio, é verdade! A notícia se espalhou como bando de quatis. Fabiano Rei escutou a fala macambuzia do locutor depois de ouvir a pancada firme de um efeito sonoro prenunciando uma nota de falecimento. Fez sinal da cruz pensando na morte do amigo de tantas lutas nas festas da capela do bairro e nas tardes de jogo de truco no pavilhão da escola. Rei tratou de telefonar para outros amigos da comissão da capela, avisando da tristeza.

Afonso das Neves e Manoel Tomás foram os únicos que se empenharam em ir ao guardamento do falecido, tão boa alma! Na hora aprazada prometeram chegar na casa de velórios para a despedida de um companheiro boa praça, temente a Deus e singelo pagador dos dízimos, miserável contribuinte dos impostos municipais.

Sempre pontual e cumpridor dos seus devedores, Rei foi o primeiro do trio que chegou para velar o morto. Era dezenove em ponto. Notou que a sala de velórios estava abarrotada de pessoas de todas as cores e que a viúva se derretia em prantos, enxaguando o peito do de cujus com baldadas lágrimas de emoção e pesar. Rei também sentiu um punhado de ciscos nos olhos e com medo de que o vissem chorar, achou um canto para se recompor da tristeza. Ali mesmo, num banco esgualepado, tratou de rezar um Pai Nosso para aliviar os pecados do morto. Mais calmo, olhou ao derredor e viu poucos conhecidos. Na verdade, quase nenhum. Ficou desconfiado.

Foi quando Manoel Tomás aparceu meio assustado e nem foi ver o corpo de Leutério pinchado num caixão jaguara. Embora não admitisse, tinha medo de defuntos. Mas como o velho parceiro das quermesses da capela e das jogatinas de truco foi morrer assim? Simplesmente capotou da velha bicicleta e trincou a cabeça no meio-fio, disseram entre cochichos alguns estranhos. Quando os bombeiros chegaram, nada mais podia ser feito.  

Disposto a render a memória do falecido, Afonso deu uma passadinha no Bar do Neco, onde entornou um copo de bíter e outros quatro da melhor purinha de Corupá. Já passava quase uma hora das dezenove quando ele apontou na porta principal da casa de guardamentos e tropicando nas pernas bambas travou diante do cadáver exposto aos chorumes dos familiares e dos comensais de plantão, atacados nos cuques e nos pitéus da cozinha.

Passado o susto inicial, Afonso disfarçou e fez correr os olhos pela sala, procurando os amigos. Sentiu um certo conforto quando percebeu Rei e Manoel Tomás empertigados no mesmo banco esgualepado. Fingindo um trote firme, foi encontrá-los e não se conteve:

“Aquele morto não é o nosso Leutério!”

“Será?”, Rei arguiu. “Mas deu no rádio. Só pode ser verdade!”

Sob comissão os três rumaram em direção ao esquife. Rei e Afonso então repararam bem. Manoel Tomás nem quis olhar. Foi então que Afonso, enrolando a língua, deu o veredito:

“Esse coitado nem tá com a fuça inchada de cachaça!”

Desanimados, deixaram o guardamento. Foram traídos pela notícia. Uns três meses depois a mesma emissora de rádio anunciou que um Eleutério Gonçalves morrera de morte morrida. Na boca da noite, muito felizes e animados, Rei, Manoel Tomás e Afonso correram para o velório. Desta vez não tinha erro!

- Ads -
Olá, gostaria de seguir o JMais no WhatsApp?
JMais no WhatsApp?