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Locke e a separação entre igreja e Estado

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Locke propôs uma abordagem inovadora para superar as tensões decorrentes das diferenças de crenças

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Na última semana, a Receita Federal anulou a controversa isenção fiscal sobre o salário de líderes religiosos, concedida às vésperas da última eleição e assinado pelo mesmo funcionário que tentou liberar as joias da União para que o ex-presidente Bolsonaro as tomasse para si. Novamente a questão da diferença entre o que é público e o que é privado e a utilização do Estado para interesses não necessariamente públicos se coloca como um problema em nossa República.

Diante dos últimos desdobramentos, vários atores políticos entraram em campo em direção crítica ao fim da isenção mencionada, chamando de “absurda” a decisão, como se o Estado devesse ser influenciado em suas decisões técnicas por questões religiosas. Ou seja, para esses críticos de última hora, o salário de líderes religiosos precisaria de isenção de imposto de renda, mas o salário dos trabalhadores que sustentam as igrejas com os dízimos, eles precisam pagar impostos.

Nesse sentido, se faz salutar retomarmos os argumentos do pai do liberalismo, John Locke, na obra chamada Cartas à Tolerância, na qual a separação entre igreja e Estado emerge como uma ideia central e revolucionária. Locke, atento ao cenário de conflitos religiosos de sua época, propôs uma abordagem inovadora para superar as tensões decorrentes das diferenças de crenças e da relação entre a religião e o Estado.

Locke argumentava veementemente que o Estado deveria manter uma posição neutra em relação às questões religiosas. Em outras palavras, o governo não deveria endossar, perseguir ou, ainda, favorecer uma religião. Essa neutralidade era fundamental para garantir que as instituições estatais fossem acessíveis e justas para todos os cidadãos, independentemente de suas convicções religiosas.

Um ponto crucial nas Cartas é a defesa de Locke pela libertação do controle eclesiástico sobre o Estado. Ele sustentava que os líderes religiosos não deveriam exercer autoridade sobre as funções governamentais, e vice-versa. Essa separação evitaria a imposição de doutrinas religiosas sobre a legislação civil, garantindo a autonomia de ambas as esferas.

Locke enfatizava que a liberdade religiosa era um direito inalienável de cada indivíduo. Ele defendia que as pessoas tinham o direito de praticar sua fé de acordo com sua consciência. Ao estabelecer a separação entre igreja e Estado, Locke buscava criar um espaço público onde todas as crenças pudessem coexistir pacificamente.

A proposta de Locke para a separação entre igreja e Estado também visava prevenir conflitos religiosos, tão comuns na Europa da época. Ao retirar o componente religioso das decisões políticas, ele acreditava que seria possível construir uma sociedade mais estável, onde as divergências teológicas não se transformassem em causas de guerras e perseguições.

Ao estabelecer a separação entre igreja e Estado, Locke conferia maior legitimidade ao poder civil. Ele argumentava que o governo deveria basear suas leis em princípios racionais e consensuais, em vez de fundamentar-se em dogmas religiosos que excluíssem parte da população.

Para o autor, a função do Estado é governar os corpos. E a função da igreja é salvar as almas. Nesse sentido, a igreja, ou, ainda, os líderes religiosos não poderiam influenciar as decisões do Estado, que visa governar os corpos. Bem como o Estado não interfere, não persegue e nem favorece a Igreja e nem os líderes religiosos. Ter uma chamada “bancada evangélica”, por exemplo, seria absurdo para Locke.

Que cada um possa se sentir completamente livre para dedicar a sua vida à denominação religiosa que mais achar adequada para a função de salvar a sua alma, caso assim queira, sem influência ou interferência do Estado ou de outras denominações religiosas. Sem que outras denominações religiosas (e nem o Estado) os persigam. Até porque, não se tem como garantir qual das denominações religiosas é a correta, se é que há uma correta e apenas uma.

Além do fato de que, para que o Estado possa governar os corpos, inclusive possa garantir que todas as denominações religiosas possam conviver, o Estado como uma capa protetora da convivência de vários modos distintos de pensar, há a necessidade de pagar as contas da segurança pública e de toda a estrutural estatal. Nesse sentido, há a necessidade de impostos.

Há regras gerais de isenção fiscal que interessam ao bem público, como, por exemplo, uma faixa de renda específica. Caso os trabalhadores chamados líderes religiosos se encaixem nessa faixa de renda, serão contemplados com a isenção, como qualquer outro trabalhador. Caso seus rendimentos superem essa faixa, pagarão imposto de renda sobre seus ganhos, como qualquer outro trabalhador.

E que as decisões da República, cada vez mais sejam tomadas por argumentos que possam ser debatidos pela razão pública, com argumentos racionais e de interesse público, e que cada vez menos interesses privados ou desprovidos de fundamentação se imponham nas costas da República.

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