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Crime e Castigo

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O poder da eloquência

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O que torna uma obra clássica, isto é, aquela que é um paradigma para as demais, a qual atravessa séculos sendo lida, relida, adaptada, vendida e aclamada por críticos e leitores? Certamente não é o assunto abordado, uma vez que, se atentarmos para as narrativas, a grande maioria trata de intrigas amorosas, conflitos familiares, fragmentos históricos ou medidas morais. Ou seja, nada genuíno. Tampouco é o estilo do escritor, pois, no rol dos clássicos, encontramos os mais variados, o que torna inviável a métrica dos mesmos.

Então, o que confere esse predicativo é a capacidade que um enredo tem de inquietar o leitor e fazê-lo pensar sobre vertentes que jamais havia conjecturado e, sobretudo, mudar suas concepções. No mínimo, ficar em dúvida e refletir a respeito.

Ao longo da leitura de Crime e Castigo, uma densa narrativa de Fiódor Dostoiévski, passamos de meros espectadores dos fatos para julgadores dos atos do protagonista e, logo, seus defensores. Sim, o poder da linguagem adequadamente empregado por Rodion Románovitch Raskólnikov nos convence de que ele é vítima das circunstâncias e, portanto, não deve ser condenado pelo assassinato hediondo que cometera.

Para implantar a dúvida no leitor, Dostoiévski se vale de um estilo detalhista, ou seja, aquele que impregna o cenário em nossa mente, pois nenhum detalhe escapa a sua precisão vocabular, como vemos no excerto abaixo:

Era um homem de uns trinta e cinco anos, estatura abaixo da mediana, gordo e até com uma barriguinha, cara raspada, sem bigodes nem suíças, cabelos rentes na cabeça grande e redonda, de um redondo saliente sobretudo na nuca. O rosto rechonchudo, redondo, com um nariz um pouco arrebitado, era de um amarelo escuro doentio, mas bastante animado e até zombeteiro. Chegaria a ser até bonachão não fosse a expressão dos olhos, dotados de um brilho meio líquido, aquoso, cobertos por uns cílios quase brancos, que pestanejavam como se piscassem para alguém. O olhar que dali se irradiava estava em uma desarmonia um tanto estranha com toda a figura, que tinha até qualquer coisa de feminino, e lhe transmitia algo bem mais sério do que se poderia esperar à primeira vista (DOSTOIÉVSKI, 2019, p.255).

A partir das descrições minuciosas, o leitor se envolve na atmosfera da narrativa e recria o elenco, as ruas percorridas, as peripécias, e assim por diante.

Após uma longa peregrinação em busca de provar, não a sua inocência, mas que seu crime foi meramente circunstancial e corriqueiro, Rodion o confessa com riqueza de detalhes, inclusive relata que não desfrutara do dinheiro que supostamente havia roubado da anciã que assassinara. Além disso, tenta nos convencer de que o grau de importância do crime pode variar de acordo com quem é o infrator, isto é:

[...] certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se, por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a carreira, ele não tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia do Mont Blanc, mas em vez dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o dinheiro do cofre. Pois bem, será que ele se atreveria a isso se não tivesse outra saída? Não ficaria enojado por ver que isso não tinha absolutamente nada de monumental e ... era censurável? (DOSTOIÉVSKI, 2019, p.421).

Depois de condenado a trabalhos forçados no exílio, reflete que não se arrepende e adiciona mais uma indagação para o leitor: que consequências o castigo trará? Como será sua vida após cumprir sua pena?

No presente, uma inquietação vaga e vazia, e no futuro apenas um sacrifício constante com o qual nada conseguiria – eis o que o esperava no mundo. E daí se dentro de oito anos ele estaria com apenas trinta e dois e poderia recomeçar a vida? De que lhe serviria viver? O que iria ter em vista? Qual seria sua aspiração? Viver por existir? Acontece que antes ele já estivera milhares de vezes disposto a dedicar toda a sua existência a uma ideia, a uma esperança, até a uma fantasia. No entanto sempre achara pouco existir, sempre quisera mais. Talvez tivesse sido só pela força dos seus desejos que então ele se considerara um homem a quem era permitido mais que a outros (DOSTOIÉVSKI, 2019, p.554).

Acrescento à discussão que a personagem principal dessa obra não é o assassino, seu crime e seu castigo, mas sim o poder que a palavra tem, a qual é o instrumento que dita sentenças, as quais podem condenar ou libertar. É assim sempre, nos pequenos e nos grandes acontecimentos. Essa é a dinâmica da vida. Dominar, ou não, a linguagem é sinônimo de sucesso ou fracasso, respectivamente.  Ao mostrar isso em “Crime e castigo”, Dostoiévski tornou essa narrativa um dos maiores clássicos literários de todos os tempos!

(DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. 8 ed. São Paulo: Editora 34, 2019).


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