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Canto dos Malditos

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Holocausto Psiquiátrico Brasileiro

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Inicio parafraseando o grande escritor João Guimarães Rosa: “professor não é aquele que ensina, mas quem, de repente, aprende”, pois tenho comprovações dessa premissa diariamente. Uma delas ocorreu ao discorrer para os alunos do terceiro ano do Ensino Médio acerca das técnicas de redação de vestibular e ENEM. Após apresentar as características do texto dissertativo-argumentativo, o qual é geralmente o tipo de texto cobrado nas provas seletivas, propus algumas para realização. Primeiro, temas polêmicos e bastante conhecidos. Logo, selecionei uma proposta da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que aborda o mote da eletroconvulsoterapia. Como havia imaginado, os estudantes nada sabiam a respeito. Então, aproveitei para mostrar-lhes que as técnicas de escrita são poucos eficazes se não temos conhecimento do assunto abordado.

Ao corrigir as redações, me chamou a atenção uma que, usando fontes da internet, citava o livro Canto dos malditos, de Austregésilo Carrano Bueno, uma vez que, apesar de haver cursado, durante meu Doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, disciplina sobre “Literatura de Confinamento”, e haver lido muitas narrativas sobre hospícios, nunca ouvira falar dessa obra.

Quem me conhece ou acompanha meus textos sabe que, obviamente, fui imediatamente conhecê-lo! É difícil ler sobre um assunto tão hediondo e, mais desafiador, escrever a respeito. Entretanto, como nos admoesta Erico Verissimo, a tarefa primordial do escritor é trazer à luz os subentendidos, mostrar ao leitor verdades que foram ocultas ou distorcidas. Ou, então, analisar livros que evidenciam erros crassos devido à ignorância científica ou ocasionados pela maldade totalitária.

 A obra Canto dos malditos é um relato pessoal do autor, o qual, no início de sua adolescência, na década de setenta do século vinte, fora internado num manicômio e vítima de inimagináveis torturas num processo brutal de desumanização. Durante o enredo, fica nítido que a ignorância sobre um assunto pode ter consequências catastróficas. Naquele entrementes em que imperava a Ditadura Militar, a Psiquiatria era, muitas vezes, utilizada como método de exclusão dos que não se enquadravam nos padrões considerados “certos”, e, por conseguinte, uma maneira de praticar as torturas mais cruéis, como o caso dos eletrochoques, que eram aplicados indiscriminadamente, deixando sequelas perpétuas.

Nos hospícios públicos, eram encarcerados todos os tipos de segregados, a saber, dementes, prostitutas, alcoolistas, vítimas de estupro, moradores da rua, além dos que demonstravam não aceitar o sistema político autoritário. Nos particulares, eram internados, geralmente, quem a família ditava como “rebelde’, “usuário de drogas”, “subversivo”. Sem critérios, sem diagnósticos comprovados, e absoluta falta de cientificidade e profissionalismo, todos, segundo o relato de Austregésilo, eram submetidos ao eletrochoque, como podemos averiguar no excerto abaixo:

Sentia-me um animal ferido e acuado, preso naquele quarto. Um garoto de dezessete anos, espinha na cara, barba nem pronunciada. Preso, esperando o choque! Um lugar que jamais sonhara conhecer. Preso! esperando o choque. Passando por pesadelos que fariam qualquer machão adulto ficar temeroso. Preso. Esperando o choque. Dizem que há trinta anos não usam mais eletrochoque na psiquiatria intitulada moderna. Preso.
Esperando. O Choque. O que eu estou fazendo aqui dentro, então? Preso, esperando o eletrochoque! Esse eletrochoque é um terror, meu Deus! por que fazem isso? Preso, esperando o choque. Sua aplicação é a seco, a unha nos agarram e aplicam essa porra. Por que permitem que façam isso comigo? Preso, esperando o eletrochoque. O que eles dizem para os nossos familiares é uma coisa - queria ver meu pai aqui dentro: preso, esperando o eletrochoque. Eu não queria passar novamente por aquele pesadelo. [...] A porta está aberta. Levado para o pátio, deslizo até o chão. Posso ir para o quarto — não quis tomar café. Ânsia de vômito... reviro-me e viro-me na cama. Dor de cabeça, peito, corpo todo. Um mal-estar terrível. Fui novamente atropelado — fui violentado! (BUENO, 2004, p. 103).

 O autor também adverte que os manicômios eram como uma “máquina de fazer dinheiro” e, para manter os lucros, ludibriavam as famílias dos internos fazendo-os crer que o lugar era como um “recanto feliz”. O espaço de visitas tinha jardim e uma atmosfera pacífica, ao passo que as alas em que ficavam os pacientes eram sujas, degradantes e infectadas de piolhos e fezes. Injetavam medicamentos que aumentavam o apetite para que eles engordassem rapidamente e, aos olhos dos familiares, parecessem “saudáveis”. Então, quando relatavam as atrocidades, ninguém acreditava.

 O histórico dos manicômios brasileiros, por muitas décadas, foi tão nefasto que ficou conhecido como “Holocausto Psiquiátrico”, pois, assim como no extermínio dos judeus, eliminara pessoas usando torturas e experimentos. A publicação do relato de Austregésilo estarreceu a sociedade e, por alegarem calúnia, foi proibida de circular. No entanto, o autor não se calou, foi aos tribunais exigir liberdade de expressão e, além, disso, ingressou no Movimento da Luta Antimanicomial, que milita contra as condições insalubres dos hospícios e exige indenização, sobretudo, às vítimas da eletroconvulsoterapia. Ademais:

O livro Canto dos malditos deu origem ao premiadíssimo filme Bicho de sete cabeças, que conquistou 53 prêmios, sendo oito internacionais — um deles como o melhor filme, ator, direção e roteiro no Festival de Cinema em Biarritz, na Franca, em 2001. O livro obteve sucesso e aceitação na sociedade e nos meios universitários, e suscitou a repercussão do excelente filme dirigido por Lais Bodanzky, com Rodrigo Santoro no papel principal representando o autor da obra (BUENO, 2004, p.176).

Na medida em que, se tratando de capítulos sombrios da História, sempre há os negacionistas e os que defendem os algozes, o processo de divulgação dos abusos sofridos pelos pacientes psiquiátricos que estiveram internados durante o Regime Militar foi árduo. Apesar de uma longa trajetória traçada e ainda por diante para melhorar o sistema, o movimento conquistou a Lei Federal de Reforma Psiquiátrica no Brasil n° 10.216/abril de 2001. A mesma tem como fundamento o tratamento mais humanizado dos pacientes acometidos por doenças mentais, e o fechamento gradual de manicômios e hospícios existentes no País. A internação do paciente só deve ocorrer se o tratamento fora do hospital se provar ineficiente, enquanto outros métodos humanizados são praticados, como o atendimento psicossocial, em que há o acompanhamento de vários profissionais além do psiquiatra – como psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas –  a inserção do paciente em programas educacionais, de lazer, esportivos e no mercado de trabalho, o auxílio-doença, entre outros.  

Dessa forma, é possível afirmar, mais uma vez, que a escrita tem poder, e a coragem de se relatar sobre capítulos funestos da História é, além de um exercício de liberdade e um convite à reflexão, uma possibilidade de mudanças frutíferas como aconteceu com a implementação da lei supramencionada. O ato de ler está na mesma proporção emancipadora e transformadora.

(BUENO, Austregésilo Carrano. Canto dos malditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004).

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