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A tarefa da política que vem… profanar a vida e devolvê-la ao uso comum

Imagem:IRNA

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Como chegamos a este ponto? Que garantias de mundo pode haver neste contexto?

Sandro Luiz Bazzanella*

Sandra Eloisa Pisa Bazzanella**

Tensões geopolíticas globais; guerras entre povos e países; ameaças de conflitos nucleares; guerra comercial; emergência climática; precarização das condições de trabalho; ausência de debate público; a mentira (fake news) invade o cotidiano dos indivíduos; ascensão do ódio e da violência na esfera da política; a política pública foi capturada pelos interesses privados do capital; a governança em formato empresarial das questões e dos bens públicos se apresenta como única forma possível de governo; Estados diuturnamente alteram suas cartas constitucionais (sem o necessário e devido debate público), reformando seus arcabouços legais para garantir os interesses do capital em detrimento das questões sociais; A riqueza socialmente produzida cada vez mais concentrada ampliando a miséria e a pobreza entre povos e países. E a descrição de infortúnios poderia seguir por vários parágrafos.

Diante deste cenário é urgente nos questionarmos: O que está acontecendo? Como chegamos a este ponto? Que garantias de mundo pode haver neste contexto? Aliás, em algum momento da trajetória dos seres humanos neste planeta houve alguma garantia de mundo? Há algo que possa ser feito para amenizar estes riscos, estas contradições e a disseminação generalizada de violência em que estamos inseridos?  Responder a estas questões em artigo desta natureza seria pretensão desmesurada. Pretender encontrar ao longo da leitura deste texto soluções para os questionamentos acima apresentados é o menor caminho para a decepção, bem como estratégia equivocada de dispensar o intransferível esforço de desafiar-se a pensar por própria conta e risco. A importância dos questionamentos acima situados reside na compreensão de que urge retomarmos a capacidade de elaborar um bom questionamento como forma de vida e de pensamento comprometida com o contexto de mundo em que a vida se encontra inserida. Ou dito de outro modo, o atual contexto de mundo requer transcender a postura passiva que se contenta com as respostas de outrem, de especialistas que apontam para fáceis soluções diante de complexos problemas vitais, sociais, políticos, econômicos em curso no atual contexto histórico. Trata-se, portanto, de convite para assumir o mundo, seus riscos e suas possibilidades a partir da potência do pensamento individual em permanente diálogo e debate com as demais potências do pensamento que vivem, convivem e compartilham o mundo nesta quadra histórica.

Diante do exposto, reflitamos sobre a primeira questão acima exposta: “O que está acontecendo?” Para considerá-la um caminho possível é procurar compreender o modo de organização social que se constituiu na transição do mundo medieval para o mundo moderno. Ao longo dos séculos XVI à atualidade se constituiu e se afirmou o modo de produção capitalista. A novidade deste modo de produção em relação às formas de manufaturas artesanais foi ter imputado valor de troca ao trabalho, suplantando o valor de uso que a produtividade da terra assumia no contexto das relações comunitárias do mundo medieval. Disto se compreende que, otimizando os processos produtivos, no modo de produção do capital, as relações de produção são articuladas com a finalidade de acumulação de capital. Não se trata mais de produzir com vistas à subsistência humana e comunitária, mas de produzir com o intuito de acumulação de capital a ser investido na intensificação de sua capacidade de acumulação. Trata-se de ininterrupto progresso e/ou desenvolvimento do capital. O capital desconhece limites. Ao reconhecimento de limites ao regime de acumulação de capital nomeia-se “crise”, pois implica em ameaça a sua sobrevivência.

É neste contexto de afirmação do modo de produção do capital que a exploração do trabalho assume centralidade. O trabalho desde os primórdios da condição humana era condição para a subsistência, porém, agora passa a ser explorado, expropriado para o acúmulo de capital. Trata-se da transformação do trabalho em mercadoria, que como tal pode ser comprada, vendida, precificada a partir de sua especialidade, ou de sua temporalidade produtiva. Assim, o trabalho cuja produtividade outrora se inseria e resultava de um conjunto de relações singulares entre os seres humanos, e destes com a natureza, a partir de valor de uso, passa a ser concebido e executado a partir do valor de troca, em sintonia com a necessidade de acúmulo do capital.  Porém, para que o regime de acumulação de capital se efetivasse e garantisse sua reprodutibilidade acumulativa fez-se necessário estender a concepção de trabalho, a condição de mercadoria a ser precificada, comprada ou expropriada a toda e qualquer ação humana, bem como a toda a ação da natureza. Ou dito de outra forma, o capitalismo se constituiu como um modo de produção de extensa expropriação e exploração do trabalho humano e natural como forma de acumulação do capital.

É sob tais pressupostos, que o capitalismo desde seus primórdios estabelece com a natureza relação de intensa exploração. Concebendo a natureza como mero depósito de matérias primas, expropria os recursos disponíveis levando-os aos níveis do esgotamento. Ao conceber a natureza como pura res extensa, como pura realidade material, como depósito de matéria e energia a ser explorada, o modo de produção do capital desconsidera a vida própria da natureza e sua contribuição determinante para a manutenção da vida em sua totalidade de formas de manifestação, inclusive a vida humana.  É a partir desta concepção reducionista, objetiva, da natureza que o regime de acumulação de capital expropria de forma violenta e à exaustão o trabalho vital da natureza sem remunerá-lo. O trabalho vital da natureza é submetido à violência das mais variadas formas de expropriação, sob o argumento de que a natureza está a serviço do homem por carecer de capacidade de estabelecer sentido e finalidade à vida, ao passo que o ser humano é o único animal do planeta em condições de fazê-lo, e o faz com excelência.

Sob tais pressupostos, também é preciso considerar que parte significativa do trabalho humano é remetida a condição reducionista de valor de troca, tal como a natureza e, portanto, expropriado e não remunerado. Trata-se aqui do trabalho das mulheres com os membros da família, dos trabalhos de cuidado com as crianças e os idosos, entre outras formas comunitárias e sociais de trabalho que se apresentam vitais na manutenção da sociedade de plena produção e consumo, mas que não são remunerados pelo capital. Ainda, nesta direção, também é preciso considerar a violência que o regime de acumulação de capital exerce sobre as formas de trabalho básicas e fundamentais para o adequado funcionamento social, trata-se aqui do trabalho do gari, das empregadas domésticas, dos entregadores de comida, de encomendas diversas, dos motoristas de aplicativos, dos trabalhadores de home office, entre outras formas de trabalho precarizadas e plataformizadas vigentes na atual quadra histórica.

Disto resulta que o modo de produção e organização social no qual estamos inseridos, assentado no regime de acumulação do capital, apresenta-se desde seus momentos iniciais como regime marcado pela violência da exploração e expropriação do trabalho da natureza e do trabalho humano.  Ou dito de outra forma, a quase totalidade do trabalho exercido, e fundamental para a reprodução do capital, não é remunerado, mas intensamente expropriado. 

Diante do exposto, torna-se evidente que o fundamento do regime de acumulação do capital reside sobre a violência à vida humana e natural. Expropriação e exploração levadas aos limites da vida em sua condição natural e humana.  Trata-se de aniquilar toda e qualquer forma de vida que não se enquadre na religião do capital. Ao mesmo tempo e em contrapartida, trata-se neste modo de organização produtiva e política que enseja formas de subjetivação para a reprodução social do capital, de promover constantes revoluções científicas e tecnológicas que permitam precarizar e intensificar a expropriação do trabalho humano e natural em função da manutenção do regime de acumulação de capital.

A estabilidade deste modo de produção assentado na reprodução infinita do capital com fim em si mesmo, e que concebe a natureza, o ser humano e o mundo humano como meros meios, enseja um modo de subjetivação, de conformação dos indivíduos e da sociedade inerentes ao seu modus operandi hegemônico neste contexto histórico. Ou seja, a conformação de um modo de produção implica uma forma de organização social, bem como de conformação de processos de subjetivação que dinamize, confira sentido e finalidade à vida e a ação dos indivíduos na reprodução do modelo social vigente. Nesta direção, uma das narrativas discursivas mais eficientes que legitimou e legitima o atual regime de acumulação de capital em sua voracidade consumidora do trabalho, da vida, é a economia, ou melhor, certa forma de conceber a economia na modernidade.

Na modernidade a economia constitui-se como ciência, mais especificamente como ciência humana com a pretensão de descrever cenários produtivos, as inúmeras relações desencadeadas pela oferta e demanda de produtos, os impactos da escassez no regime de preços, de circulação de mercadorias, bens e serviços, os fatores que motivam o aumento ou declínio do consumo, a precificação do trabalho, dos produtos, o custo de vida, entre outras questões inerentes à compreensão do funcionamento e vitalidade do regime de acumulação de capital. Ou seja, a afirmação da economia como ciência na modernidade decorre, entre outras variáveis de duas situações que se apresentam na aurora da modernidade: a) o impacto cientificista promovido pela física newtoniana no estabelecimento de leis universais que incidem sobre o funcionamento da natureza e, por decorrência das sociedades humanas; b) A necessidade de justificação e legitimação do capitalismo como modo de organização social, política e econômica.

Nesta direção, muito mais do que uma ciência (classificada como ciência humana), a economia se constitui como propagadora da liturgia do capital. Ou dito de outra forma, a tarefa desta ciência era construir um discurso público que justificasse a ação predatória do capital na precificação do mundo, da vida, das relações humanas entre si e, das relações humanas com outras formas de vida, do trabalho humano e natural, bem como em determinar seu valor de troca no contexto de plena produção e consumo necessário à conformação de sociedades capturadas pelo fetiche da mercadoria. A concepção de economia que se estabelece na modernidade abandona sua concepção original que implicava desde o mundo antigo considerar o conjunto de relações humanas e técnicas de gerir recursos, mas, sobretudo como arte de assegurar o adequado funcionamento das relações humanas entre os membros da oikos (da casa) como forma de manutenção e promoção da vida.

A concepção antropológica que subjaz a economia moderna é a do indivíduo comprometido com seus interesses específicos. Do indivíduo vinculado a escolhas racionais que otimize sua capacidade de produção, de consumo, de enriquecimento. Assim, a concepção de riqueza também se modifica, indo além da abundância produtiva advinda da atividade produtiva humana em relação com a terra, para o fetiche do dinheiro, a partir da possibilidade de auferir os lucros advindos da exploração e expropriação de toda e qualquer forma de trabalho submetido à lógica do capital em curso. Neste contexto, afirma-se a ciência da “economia-política” e seu regime discursivo, litúrgico de legitimação do regime de acumulação de capital. Os economistas modernos assumem o lugar deixado pelos teólogos medievais na afirmação dos dogmas do capital fundamentais na disseminação da religião do capitalismo. Suas homilias cotidianas requerem de seus fiéis consumidores crença em seus dogmas e verdades.

Mas, então, o que está acontecendo atualmente no mundo? Por que a proliferação das guerras, do genocídio em Gaza, da violência contra refugiados, contra imigrantes em vários países mundo afora, da precarização do trabalho, do avanço da fome, da miséria entre povos e países? O que explica o avanço da barbárie se a humanidade alcançou nos últimos séculos tamanha capacidade científica e tecnológica? O que explica a dramaticidade da atual situação se a capacidade industrial, agrícola, produtiva é mais do que suficiente para produzir bens e riquezas para toda a humanidade? Por que estamos enfrentando uma emergência climática e que riscos tal situação impõe à vida?

Guerras, conflitos fazem parte da trajetória dos seres humanos no planeta terra. Elas não são novidades. A guerra “É a expressão exacerbada da violência. É a racionalização do uso da força na promoção da violência desenfreada, a serviço da destruição do humano e do mundo humano. A guerra é aniquilação parcial, ou total do outro. É a manifestação brutal da vontade de submissão e, humilhação do outro.  A guerra é o subproduto do desequilíbrio (…), ou da busca de equilíbrio (…) nas relações de poder entre grupos humanos, povos e países.  Os seres humanos são seres cujas relações são transpassadas pelas relações de poder. Desde tempos imemoriais as guerras são feitas em função do domínio dos corpos como primeira fronteira, dos territórios, de controle de riquezas naturais, de escravização dos povos derrotados. Nas guerras não há vencedores, senão apenas dor, sofrimento, cicatrizes, humilhação, dominação e morte. Mas não desconsideramos que “a política é a guerra continuada por outros meios”[i], e nem que a economia é a guerra continuada por outros meios[ii], o que significa dizer que a economia é o palco artificialmente projetado para simular uma relação de estabilidade e consenso, ao passo que ininterruptamente são manipuladas e desencadeadas estratégias de guerra para chantagear, extorquir e compelir.”[iii]

Mas, determinante para avançar na compreensão do que está acontecendo no mundo atualmente, é considerar, além do exposto o argumento anteriormente situado de que o capitalismo é um modo de produção, de organização social fundamentado na violência. Ou seja, para assegurar o regime de acumulação de capital necessário a sua reprodução é preciso a cada período intensificar a expropriação do trabalho humano e da natureza.  Porém, neste momento histórico a natureza está emitindo claros sinais de esgotamento de sua capacidade de regeneração das condições que permitem a continuidade de vida na terra, o que incide em limites de produção e consumo, limitando a acumulação de capital.  Por outro lado, os trabalhadores mundo afora violentamente precarizados em suas condições de trabalho, os milhões de trabalhadores não remunerados, os milhões de imigrantes, de refugiados, pressionam pelo reconhecimento de sua condição e afirmação de direitos, o que incide sobre o regime de acumulação de capital, de concentração da riqueza socialmente produzida na forma do lucro de corporações e alguns poucos indivíduos mundo afora.

O que estamos presenciando é uma profunda crise do capitalismo, da religião do capital, de sua liturgia. Nestes momentos, o capitalismo abre os portões do inferno, libera seus demônios, seus cães bravios. A pauta principal é destruir a atual ordem social que ameaça o regime de acumulação de capital. A ordem é provocar todo tipo de desordem e por fim a guerra. Não é por acaso que Joseph A. Schumpeter definirá o capitalismo como um regime de destruição criativa. É preciso destruir a atual ordem social para reafirmá-la em novas bases propícias à acumulação de capital.  As experiências históricas recentes do fascismo e do nazismo surgidas no seio das democracias liberais de mercado nas primeiras décadas do século XX são provas irrefutáveis do caos promovido pelo capital quando questionado em seu regime de acumulação. 

Em âmbito mundial, a ascensão da extrema-direita (e no Brasil, sobretudo com o bolsonarismo) nas últimas décadas, a violência contra os refugiados na Europa e agora nos Estados Unidos, o genocídio de Gaza, a omissão da guerra civil no Sudão (continente africano), a guerra comercial promovida pelos EUA em relação ao mundo, a constante ameaça de uma guerra nuclear, bem como no âmbito nacional, o sequestro do Estado brasileiro pelos deputados do “Centrão” representantes do capital especulativo da “Faria Lima”, as exigências de que o Estado se desvincule de políticas sociais, que reduza os investimentos em saúde e educação em função do “ajuste fiscal”, entre tantas outras expressões de violência que explodem cotidianamente são expressões dos limites do regime de acumulação de capital (capitalismo) em seus esforços de perpetuação da agressiva lógica de capital em relação ao mundo humano e natural.

Nos tempos do fim, mas não no fim dos tempos, a tarefa por excelência da política que vem é paralisar a máquina produtora do fetiche, do encanto, da produção de desejos e necessidades inerentes à mercadoria que alimenta diuturnamente a sociedade de indivíduos consumidores e produtores e, que por decorrência garante a dinâmica concentracionária do capital em detrimento da riqueza socialmente produzida, mas privadamente concentrada. Ou dito de outro modo, urge paralisar a máquina suicidaria que captura o trabalho da natureza, o trabalho humano, o trabalho material, imaterial e os submetem às mais variadas formas de violência, exploração, precarização como condição de garantia do regime de acumulação de capital. 

Assim, no tempo que resta é fundamental paralisar a máquina política, econômica e jurídica que legaliza a violência que atravessa a sociedade da plena produção, de pleno consumo, da descartabilidade de produtos, de relações humanas e, de mundo. E, no mesmo movimento trata-se de profanar o valor de troca imputado pelo capital às relações humanas e naturais, devolvendo o valor de uso ao uso comum, comunitário dos bens produzidos, das relações humanas consigo mesmo, com a natureza e com o mundo, ensejando práticas e formas-de-vida, comprometidas com o cuidado com o mundo e a vida em sua totalidade e diversidade de formas de manifestação. Paralisar a máquina do capital e profanar seus imperativos econométricos é assumir a responsabilidade em deixar um mundo menos violento e conflitivo para as presentes e futuras gerações.  Desconsiderar a crítica e a necessidade de agir politicamente nesta direção é aceitar miseravelmente a precariedade do modo de vida do capital.


[i] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso dado no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 22. 

[ii] a economia não substitui a guerra, mas a continua por outros meios, e que passam necessariamente pelo Estado: a regulação da moeda e o monopólio legítimo da força para a guerra interna e externa. […] a economia da dívida transforma a ‘guerra civil mundial’ (Schmitt, Arendt) num emaranhado de guerras civis: guerras de classe, guerras neocoloniais contra as minorias, guerras contra as mulheres, guerras de subjetividade.” ALLIEZ, Éric; LAZZARATO, Maurizio. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2021, p. 15 e 27

[iii] BAZZANELLA, Sandro Luiz; GODOI, Cintia Nevez; CANI, Luiz Eduardo. Guerra. https://emporiododireito.com.br/leitura/guerra-coluna-stasis