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maio

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Varava as noites sapecando, a despeito da ventania do brabo inverno das beiradas do rio Timbó

Fernando Tokarski *

Nunca me contaram porque Pito Guapeca ganhou este apelido. O porquê do Pito eu sei. Coisas de infância, economia de letras, pois na pia batismal ganhou o nome de Epitácio. Era um homenzinho lerdo e trigueiro, capaz de não mais que sessenta palavras caboclas ditas da boca pra dentro. Daí talvez o ordinário cognome de Guapeca. Acho que nunca andou numa escola. Só vestia alguma fatiota de qualidade duvidosa quando havia festas na capela do Arroio do Meio ou nos arredores, nas corridas de cavalos ou ainda, no mais tardar, nos bailes de paiol festejando o sucesso de um pixerum. Aforante, andava descalço, mesmo nos dias de geadas pretas, daquelas de encarangar piás desprevenidos ou velhos desavisados.

Apesar da lerdeza quase virada em pedra, era esmerado e caprichoso trabalhador, especialmente na luta da erva. Varava as noites sapecando, a despeito da ventania do brabo inverno das beiradas do rio Timbó. Antes, na poda do mate, subia nas erveiras tal qual serelepe, aproveitando-se do tamanho encolhido e da magreza quase desértica.

Nas bodegas do seu mundo, aninhava-se num canto para ouvir as tagarelices das gentes do seu ermo. Pitava palheiros de fumo macaio, mas em raras vezes experimentou um trago de cachaça ou de licor. Quando as conversas descambavam para as risadas, preferia rir em silêncio, apenas torcendo um dos cantos da boca, como se estivesse com um ar nos beiços. Nos dias de fastio como um potro desgarrado perambulava pelas invernadas procurando a solidão.

Nas domingueiras, contentava-se apenas observar no habitual silêncio, apoiando o corpo miúdo nas paredes, segurando um copo de gasosa de framboesa. De revesgueio, acompanhava os pares dançantes nos xotes e bugios da moda. Jamais de atreveu a dançar, mesmo a mais arrastada milonga.

Foi numa dessas tardes de bailantas que vislumbrou Dilaci, guria meio gorducha, riso frouxo e fagueiro, ancas largas, dançadeira que só. Ela morava distante uns oito quilômetros, nos lados da Canhada Funda. Nasceu então uma paixonite de cortar o coração! No costumeiro silêncio, Pito Guapeca passou a acompanhá-la inclusive nos jogos de futebol e até nas rezas dos terços, nas matinadas de domingo. O peito arfava quando via Dilaci reboleando os quartos escondidos sob o vestidinho floreado. Aproximar-se, jamais!

Extraviados meses de ansiedade e agonia, um dia garrou coragem e na vila de Valões, no armarinho de um turco, começou a realizar seu sonho. Semanas depois, Pito Guapeca bateu na Canhada Funda num ensolarado domingo. Vestia a melhor calça de brim e novinha camisa Volta ao Mundo, comprada na mesma vila. Claro que não esqueceu os sapatos e passou Glostora nos cabelos. Obviamente viajou a pé, pois sequer tinha um matungo manco. Pelas 16 horas, de surpresa, bateu palmas diante do portão da casa de Dilaci.

Ela atendeu aos latidos da cadelagem. Tremendo feito vara verde Pito Guapeca mal disse “tarde” e num rompante mostrou à moça um par de alianças, propondo noivado. Ela, polaca bem resolvida, fez manifesto dizendo sequer conhecer o pretendente, a não ser de vista. “Nóis nem nunca conversemo!”, logo disse. Pito inclinou a cabeça, acomodou as alianças num dos bolsos e sob a orquestra da cachorrada raivosa volveu à estrada. Como Dilaci pôde refugar sua paixão e seu convite ao noivado? Quis chorar, mas a vergonha do choro não deixou. Na verdade, não sabia o que fazer. De fato, sentiu-se mesmo um guapeca!

Ainda na terça-feira Pito Guapeca não apareceu em casa, nem nas lidas da lavoura como catolicamente fazia. No dia seguinte, numa boa distância da casa de Dilaci, Juca Marconde, conserveiro de estradas, precisou ir aos pés no meio do mato. Porém, atalhou a arte fisiológica ao se deparar com o frágil corpo de Pito pendurado pelo pescoço num pé de tarumã, preso pelo cinto de couro das calças do falecido.