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Quarup – alegoria de um Brasil revelado

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Obra mostra o ponto de vista dos opositores à ditadura

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Muitos dos grandes literatos brasileiros, a partir de diferentes perspectivas e estilos, desvelam nosso país na tentativa de compreendê-lo, como José de Alencar, de um viés romântico e estereotipado; Machado de Assis, com sua acidez requintada; Jorge Amado, com a traquinagem engajada; Erico Verissimo, com um humor detalhista; Oswald de Andrade, supervalorizando nossos trejeitos, entre vários outros.

Nessa confraria podemos acrescentar o romancista, jornalista, dramaturgo, biógrafo, membro da Academia de Letras, Antonio Callado, com sua narrativa Quarup, a qual foi publicada durante a Ditadura Militar, e mostra o ponto de vista dos opositores a este sistema.

A personagem principal do enredo é o padre Nando e o núcleo narrativo acompanha a sua evolução, tanto psicológica quanto social. Ele inicia seu percurso estando encarcerado num mosteiro e com o intuito de ir em busca das comunidades indígenas criadas pelos jesuítas no Rio Grande do Sul, pois acreditava que somente a pureza dos gentios poderia resgatar os valores morais necessários para nossa nação. É nesse meio que conhece a cerimônia que dá nome ao livro – Quarup – a qual celebra a ressurreição dos mortos.

Para Nando, o estilo de vida desprovido de interesses monetários dos Guaranis é um modelo de harmonia e de sofisticação, cujas características estão num patamar mais elevado e servem de exemplo para nossa sociedade capitalista desenfreada: “[…] palavra que eu gostaria de ver a República Comunista dos Guaranis estudada até pelos biologistas. Os jesuítas das Missões não aceleraram a história de um povo. Aceleraram a evolução da espécie” (CALLADO, 2019, p.27).

Outro costume observado e reverenciado é o empoderamento das índias, pois elas têm total controle sobre seus corpos e atos através da simbologia do “Uluri”, a tanga que cobre suas partes íntimas e só por elas pode ser retirada para o ato sexual. O índio, por sua vez, não ousa tocá-lo, esperando que a mulher se dispa e, destarte, autorize a aproximação.

Os dois exemplos auxiliaram Nando a constatar sua premissa inicial, isto é, a de que os indígenas têm muito a ensinar aos demais povos, mormente sobre as interações em comunidade.

E na conjuntura brasileira daquele entrementes, muitos fatores o impulsionaram à questionar os preceitos religiosos e mudar seu escopo, como o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e o posterior golpe de 1964, que inclusive o impediu de trabalhar com a alfabetização de adultos, levando-o ao cárcere como subversivo. Com isso, percebeu a necessidade de atuar para além das comunidades indígenas. Logo, renunciou ao sacerdócio e, tomando como motivação o estilo de vida comunitário que observara, foi lutar contra o sistema ditatorial que impedia a harmonia e o desenvolvimento de uma sociedade igualitária.

É nítido que as experiências de Antonio Callado estão subentendidas nas reflexões da protagonista, como, por exemplo, o fato de ter sido um dos intelectuais que mais combateu as repressões da Ditadura, de ter sofrido censura e, por ter vivido alguns anos na Inglaterra e depois retornado, ter uma visão panorâmica que o afastamento proporcionara. Dessa maneira, tinha conhecimento e audácia para impactar a sociedade com Quarup, o qual mostra o índio não romantizado, o surgimento dos sindicatos rurais, os movimentos populares, a negativa influência estrangeira, as torturas, os assassinatos, a clandestinidade e a luta armada.

Além disso, Quarup é uma obra-prima por seu estilo único, a saber, a complexidade da personagem vai se adensando juntamente com o rebuscamento vocabular. No início, o relato tem uma linguagem semelhante à jornalística. Ao longo do texto, torna-se alegórico e evidencia uma simbiose entre a palavra e o contexto obscuro dos Anos de Chumbo, como podemos constatar no excerto abaixo:

Nando fez que não com a cabeça. Se ele ao menos pudesse explicar. Aquela sangria de trevas tinha aberto nele um vazadouro. A solução era só uma. Começar a voltar, a recolher as águas, engolindo os riachos que tinham entrado pelos lados, restituindo às nuvens as chuvas caídas, me espremendo, me afinando com jeito às margens onde eu cabia menino, alargando as beiradas um pouquinho só. Enquanto isso o coco boiando no rio, tingindo o rio para que não se perca o negro (CALLADO, 2019, p.532).

O fato de Nando percorrer várias cidades do Brasil e depois voltar para seu estado de origem – Pernambuco – altamente transformado, pode ser compreendido como uma retomada intertextual da parábola bíblica do “Filho Pródigo”. Depois de uma longa saga e, assim, de completar seu Quarup, isto é, um rito simbólico de passagem, encerrando um ciclo de vida, pode renascer, junto com seu país, com uma nova roupagem ideológica. A mesma que o próprio escritor nunca abandonou, ou seja, de defensor dos direitos humanos e de valorização de nossa identidade ricamente miscelânea.

(CALLADO, Antonio. Quarup. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2019).

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