Os seres humanos definem sua realidade por meio de miséria e sofrimento
Wellington Lima Amorim*
Devemos perder a fé no gênero humano? Talvez! Motivos não faltam para considerar que a forma como ser humano se comporta na natureza corresponde ao que tem de mais nocivo para a própria condição humana neste planeta! Virus hominis. “Milhões de pessoas vivendo suas vidas distraídas! Você sabia que a primeira matrix foi projetada para ser um mundo perfeito, sem sofrimento, onde todos seriam felizes? Mas foi um desastre, safras inteiras morreram. Alguns acreditavam que faltou uma linguagem de programação que fosse possível descrever essa perfeição de mundo, mas acredito que como raça, os seres humanos definem sua realidade por meio de miséria e sofrimento, então o mundo perfeito era um sonho que seu cérebro primitivo tentou despertar, por isso a matrix foi projetada desta forma do auge de sua civilização. Eu digo sua civilização porque quando começarmos pensar por você será nossa civilização e esse é nosso objetivo. Evolução Morpheus, evolução. Como os dinossauros. Gostaria de contar uma revelação que tive durante meu tempo aqui! Ela ocorreu quando eu tentava classificar sua espécie! E descobri que vocês não são realmente mamíferos. Todo mamífero neste planeta desenvolve um equilíbrio natural com o meio ambiente, mas os humanos não. Vocês vão para uma área e se multiplicam, e se multiplicam até que todas as reservas naturais sejam consumidas, a única forma de sobreviver e se mudando para uma outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão, sabe o que é? UM VÍRUS. Os seres humanos são um mal. Um câncer deste planeta. Vocês são uma praga”.
Logo, somente um vírus para destruir outro vírus, para tentar reestabelecer o equilíbrio natural do meio ambiente. O mal surge porque somos livres para agir. Porém, é neste momento de pandemia que posso refletir sobre o pior lado da condição do homem: a liberdade. Pois, são suas atitudes intensificadas exponencialmente que denotam uma essência destrutiva no âmbito de nossas relações pessoais. Sempre preguei, o que uma amiga porto alegretense chamou nesta manhã de anarcoamorosidade, que na minha esperança juvenil a expectativa que eu tinha na condição humana é que ela fosse capaz de amar, não somente divertir-se com a genitália mas próxima. Obviamente, o amor inclui a eroticidade e os atos pornográficos, muitas vezes publicizados na rede social mais próxima. Mas, precisa sair deste aspecto formal e alçar uma nova modulação, manifestação, que seja preenchida pelo contato da solidariedade e do amor. A vida é potência, e se expressa como homini sexualis. Todavia, a orgia báquica necessita do amor para não se transformar em autodestruição, vingança dionisíaca diante da recusa e do reconhecimento de que também somos desejo, a potência misteriosa que se esconde nos bosques.
Mas, os homens e mulheres estarão preparados para esta utopia milenar propagada pelo sagrado feminino? Um projeto inclusivo que una o corpo e espirito em uma dança festiva, em que os antigos deuses de nossos ancestrais, ocidentais ou não, estarão sentados na mesa deste grande banquete? Estou sem fé e esperança. Como diz o Zé: “Lá fora faz um tempo confortável. A vigilância cuida do normal. Os automóveis ouvem a notícia. Os homens a publicam no jornal. E correm através da madrugada. A única velhice que chegou. Demoram-se na beira da estrada. E passam a contar o que sobrou!”. O que o Zé diria se eu afirmasse: a vigilância cuida do novo normal? É diante dessa realidade, biopolítica, e, os diversos dispositivos técnicos que controlam o comportamento humano, implantando medo, dividindo e conquistando a raça humana como gado. A pandemia veio para intensificar nosso medo e mediocridade. Os homens desta civilização já eram distantes voluntariamente, agora possuem a desculpa perfeita para não estar com o outro. Afinal todos gostaria de dizer: “Eu vou ser sincero com você. Eu odeio este lugar, este zoo, esta prisão, esta realidade, seu cheiro, se existe tal coisa, estou saturado mesmo, posso sentir o gosto do seu fedor, eu sinto tenho medo de me infectar com ele, para mim ele é repulsivo”. Não há mais afeto ou amor, apenas existe o registro econômico e tecnocientífico que está na ordem do dia e sua função é higienizar. É a busca pela pureza sanitária e desinfecção do outro. Ainda haveria espaço neste mundo para nascer um Francisco de Assis, que cuidava dos leprosos em seus vales, expulsos da convivência civilizacional? Ainda haveria espaço para o espirito materno, cuidador, que ocupa nosso imaginário desde a mais tenra idade? As mulheres de hoje vêem o cuidado com o outro como sinal fraqueza, submissão, subserviência. E o homem outrora viril, empreendedor, não tem direito a fragilidade, a ser tornar fraco. Como lembraria nosso cantor popular:
“Um homem também chora! Também deseja colo! Palavras amenas! Precisa de carinho! Precisa de ternura! Precisa de um abraço! Da própria candura! Guerreiros são pessoas! São fortes, são frágeis! Guerreiros são meninos! No fundo do peito! Precisam de um descanso! Precisam de um remanso! Precisam de um sonho! Que os tornem refeitos! É triste ver este homem! Guerreiro menino! Com a barra de seu tempo! Por sobre seus ombros! Eu vejo que ele berra! Eu vejo que ele sangra! A dor que traz no peito! Pois ama e ama! Um homem se humilha! Se castram seu sonho! Seu sonho é sua vida! E a vida é trabalho! E sem o seu trabalho! Um homem não tem honra! E sem a sua honra! Se morre, se mata! Não dá pra ser feliz! Não dá pra ser feliz!
Diante do totalitarismo do registro econômico e o domínio da higienização da tecnociência, a utopia de um sagrado feminino, inclusivo, orgíaco, está cada vez mais longe, não dá para ser feliz! não dá para ser feliz! E nossa extinção, enquanto humanos, está cada vez mais certa e absoluta. Por isso, ainda faço coro com nossa amiga gaúcha Adriana Calcanhoto: “Eu não gosto do bom gosto! Eu não gosto do bom senso! Eu não gosto dos bons modos! Eu aguento até rigores! Eu não tenho pena dos traídos! Eu hospedo infratores e banidos! Eu não gosto de maus tratos! Eu aguento até os modernos. Eu aplaudo”. Existiria uma possível redenção a partir dos renegados deste mundo?
II – NURA: A luz na redenção dos homens
A luz vem do Oriente, se tomarmos como verdadeiras as narrativas do século VII, de Beda, o Venerável, Doutor da Igreja Católica. Afinal, os reis magos vieram do leste da Palestina. Foram eles que seguiram uma estrela que os levou a venerar Cristo, que na tradição do Alcorão é um dos profetas. Mas quem eram eles? Provavelmente representantes da antiga religião persa: Zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra. E isto se dá porque somente aqueles que conhecem a Luz podem reconhecer a Luz. E esta fé está ligada diretamente a terra que possui um valor espiritual e diz NÃO a representação cultural puramente economicista. O HÚMUS da terra é cultura. Todavia, nosso HÚMUS, pode representar adubo, fertilização, renovação, potência, redenção. Mas também pode ser nosso alimento. E por isso, a pergunta não para de girar: Quando e a quem devo me render? Irei produzir rendas e sendas em toda a minha vida buscando redenção? De onde vem a redenção dos homens? É curioso imaginar que a palavra HOMUS ou HUMUS, é um alimento que está intimamente ligado a Saladino, e, a resistência dos árabes diante da incursão dos cruzados na terra santa, ou ainda, ao levante, que representa o nascer do sol, renovação, potência de vida, um novo ethos, porque que não dizer a redenção dos homens diante deste substantivo feminino, sagrado e divino? A redenção vem da expressão do sagrado feminino que é capaz de nos libertar de todos os males e sofrimento da existência. No islamismo se acredita que o homem nasce precisando de redenção (salvação), e, que somente podemos considerar um acontecimento relevante na vida singular de cada um, quando nos submetemos a fé, um ato considerado absurdo, mas é o salto do cavaleiro no abismo. Podemos dizer que o exemplo máximo desta atitude está na fé de Abraão que foi testada, demonstrando a sua disposição a sacrificar seu próprio e único filho diante do desejo impresso por Deus em seu coração. E, por isso, poderíamos dizer que a redenção diante deste substantivo feminino pode ser a libertação do eterno pêndulo que a existência nos submete, sempre balançando entre o sofrimento e tédio.
“Quando Zaratustra andava pela ponte, os aleijados e os mendigos vieram falar com ele. Disseram-lhe: “Olha, Zaratustra! Também o povo aprende contigo e ganha fé na tua doutrina: mas, para que ele creia em ti completamente, uma coisa ainda é necessária – tens de convencer também a nós, aleijados!” (p. 131). Tal como Jesus os curou…(Mt 11) os aleijados pedem a Zaratustra que remova deles todas as dores, maldições, imperfeições… Mas Zaratustra não se deixa levar pela compaixão, não se deixa enganar pelo aleijado. O ressentido carrega sua dor como sua essência. Curar a visão de um cego que não quer ver não adiantaria nada: a dor é a única coisa que o ressentido possui, a dor e raiva. Para Zaratustra, tirar-lhes a corcunda seria tirar-lhes o espírito. Zaratustra aprendeu isso do povo: o fraco quer que a mudança venha de fora porque não consegue operá-la de dentro. Estropiados pelo avesso, pecam pelo excesso de dor e tristeza. A cura que os aleijados querem não é o que Zaratustra tem a oferecer. Eles acham que a cura vem de fora e não do modo de vida. Então vemos o homem em toda sua impotência. Ele é triste, é vingativo, é rancoroso, tem necessidade de fazer alguém sofrer, inflingir culpa para retribuir o sofrimento de sua própria impotência, tudo para tentar aliviar a sua própria condição. Seu presente consiste em vingar-se por não poder mudar seu passado. O homem moderno se constitui por sua impotência, ele não consegue redimir o passado, sua vingança é a aversão da vontade ao tempo, é a maneira de se vingar da experiência da sua própria impotência. “‘Foi’: assim se chama o ranger de dentes e a solitária aflição da vontade” (p. 133). Ódio, ódio visceral. “A vontade não pode querer para trás; não poder quebrantar o tempo e o apetite do tempo – eis a solitária aflição da vontade” (p. 133). Mas quanto mais o homem do ressentimento odeia, tanto mais se torna cativo! Pode tanto menos, quanto mais odeia! E quanto maior a impotência, maior o ódio, e maior o acorrentamento! A própria vontade é prisioneira! E a impotência da vontade é a mais radical de todas as impotências! Não tem a ver com categorias sociais, políticas ou econômicas, mas se revela ontologicamente no tempo. Sim, a vontade é prisioneira do tempo. Se ela encontra-se cativa na sua impotência, então obviamente não pode redimir nada. A vontade se torna um espectador, vendo todo futuro transformar-se em passado. Todo “foi” pesa sobre ela, tornando-a cada vez mais fraca e impotente. Mas como viver sem culpar-se? Como viver sem arrepender-se? “Redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis!’ – apenas isto seria para mim a redenção!” – Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 133. O que é então a libertação da vingança? Libertar-se é desprender-se daquilo que é repulsivo, a libertação não é a liberação da vontade, porque a vontade é o próprio ser! Não somos schopenhauerianos, não queremos o fim da vontade. “Eu vos levei para bem longe dessas cantigas fabulosas, quando vos ensinei que ‘a vontade é criadora’” (p. 134). Sim, libertação da vingança é a libertação daquilo que é adverso à vontade, daquilo que a vontade se mantém cativa, não através da negação, mas da afirmação. “Todo ‘Foi’ é um pedaço, um enigma, um apavorante acaso – até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quis’/ – Até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quero! Assim quererei!’” – Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 134. Redimir o passado, desatar os nós do ressentimento, dissolver a má-consciência. A vontade de potência é libertadora, é portadora da alegria! Ela, e somente ela, é a portadora da redenção. “Como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso?” (p. 133). Sim, Zaratustra é o grande anunciador do além-homem porque apenas ele é capaz de redimir aquilo que passou, coisa que os aleijados não podem. Vontade redentora: aceitação integral, absolutamente incondicional, do tempo, do passado, da dor, da morte. Todos os sistemas religiosos até hoje só atuaram na denegação do tempo e da morte; fingindo que ela não existia, apenas fugiram do real. A vontade tem de querer algo mais elevado que toda reconciliação, a vontade precisa tornar-se vontade de potência. Mais que inércia, expansão! A verdadeira redenção é a libertação do ódio! Amor-fati: acolhimento amoroso do tempo e da passagem do tempo. Nunca através da resignação, nunca dobrando os joelhos, mas através da afirmação incondicional da vontade de potência, em si e no mundo”.
Rendo-me a ti, NURA, luz, redenção da existência!
*Dr. Wellington Lima Amorim é professor