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Um presente para Pietra

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Levava consigo belas e frescas rosas colhidas naquela manhã nos jardins de sua casa

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Em 1861, com a maior parte do atual território italiano sob seu controle, Victor Emanuel II foi proclamado rei da Itália. No entanto, para que a unidade italiana ficasse completa, ele deveria efetuar a conquista de Veneza e Roma. Após a vitória da Prússia, juntamente com a Itália sobre a Áustria, Veneza foi incorporada no ano de 1866. Já Roma foi anexada somente em 1870. Com a junção de Roma, completou-se a unificação da Itália.

Veneza fora palco de muitas mudanças desde os fins do século XVIII, quando Napoleão Bonaparte invadiu a Itália. Não apenas militares foram nomeados para postos chaves, como alguns civis também. Entre eles o bisavô da bela Pietra, que recebera, como prêmio, por sua dedicação e bons serviços ao imperador, um belo palácio.

Na tarde de uma sexta-feira, naquele final de século, desembarcava em Veneza o advogado Jean Louis Dupré, graduado funcionário francês que tinha, naquela essencial porta para o Adriático, uma importante e secreta função.

O imperador francês dominava todo o norte da Itália e precisava colocar pessoas de sua extrema confiança em locais estratégicos. Em um dos palácios requisitados por Bonaparte na ilha, que em cidade se transformara, Dupré instalou sua família e seu gabinete civil de trabalho.

Além dele e de sua esposa, seus filhos e filhas, levou também um exército de criados que o serviria tanto nas lides domésticas, como na parte política.

Com o correr dos anos, mudanças importantes sucederam-se na Itália dominada. A família teve que retornar para a França. Pierre, o filho mais velho apaixonara-se pela filha de um falante gondoleiro, dono de algumas terras na parte mais ao norte. Proposta alguma foi capaz de convencer sua Sofia, a voluptuosa veneziana, a acompanhá-lo em seu regresso à França.

Ficaram morando no imenso palácio onde vivera desde que em Veneza aportara. Seus familiares e a maioria dos criados retornaram aos pagos parisienses.

Em poucos anos a grande casa era um bulício só. Pierre e Sofia tiveram 8 filhos. Alguns foram trabalhar com os avós maternos na colônia ao norte de Veneza. Outros estudaram artes e ofícios nas diversas academias e colégios da terra que o pai adotara como sua e permaneceram todos morando sob o mesmo teto.

Os netos chegaram. A vida continuava. E a família aumentava.

Quase meio século depois do domínio de Napoleão muitas regiões da Itália ainda não participavam da luta por uma união entre todos os estados, entre eles, Veneza.

Foi nessa época que Pietra, bisneta do francês Jean Louis Dupré veio ao mundo. Filha caçula da família, era tratada como um bibelô por todos. Como era costume naqueles séculos, tinha preceptoras que a instruíam na arte de bem cuidar de uma casa, de regras de etiqueta, de bordados e costuras e pequenas coisas triviais inerentes aos estudos de moças de boa família. O que só conseguiam com grande esforço. Pietra era avessa a todas estas formalidades. Entre tantas instruções de coisas tão obsoletas que achava ser tão fácil de aprender só ao ver como agia sua mãe e as outras mulheres que no palácio apareciam. Mas havia algo que a interessava demais. As aulas de latim e de língua italiana, principalmente o dialeto do Vêneto. Conversava com todos os criados venezianos que faziam os serviços mais simples. No fundo o que ela queria mesmo era, por um descuido deles e ou das amas que a tutelavam o tempo todo, sair escondida de dentro da enorme casa e ir conversar com o povo nas ruas. Queria saber deles como era a vida ao lado de uma grande laguna, ao lado do mar e dentro dos barcos e gôndolas que tanto a fascinavam.

Esbelta, aos 18 anos já tinha quase a altura de seus irmãos. Seu corpo delineava-se no corpo dos vestidos que usava. Embora as saias fossem sempre rodadas e armadas a arrastarem-se pelos assoalhos do palácio e pelas vielas que o circundava, da cintura para cima as sedas mostravam a perfeição de um busto em plena evolução.

Como não conseguia o seu intento de andar pelas ruelas ou tomar um vaporeto e sair vagando pelos canais, conformava-se em ficar no palácio vendo a vida passar pelos barcos e gôndolas quase debaixo das janelas dos salões onde passava seus dias.

Inquieta, procurava descobrir encantos diferentes dos bastidores e panos, agulhas e fios em que as preceptoras, em vão, tentavam fazê-la se concentrar. Encontrou este mundo na biblioteca que ficava atrás dos escritórios de seu pai. Lá passava horas, escondida, com os olhos e o espírito enfiados dentro dos livros. Entrosou-se nos compêndios de poetas populares da região do Vêneto. Depois de desvendar os segredos do latim vulgar, descobriu os escritos de Dante, de Boccaccio e de Petrarca. Fascinava-se com as variações que encontrava em torno de uma mesma língua.

Certa tarde, embutida em seu recanto predileto ouviu o som de vozes diferentes a dialogar com seu pai no escritório. Lorenzo Tascogna, um dos encarregados dos negócios do cais do porto de Veneza, tinha importantes assuntos a tratar com seu pai. Luca, filho de Lorenzo, um jovem que se empenhava nos estudos do mar, acompanhava-o.

A conversa prolongava-se. O senhor Dupré, mais detalhes dos negócios de importação ia pedindo. Luca, ajudava a esclarecer. Servem-se do chá que a governanta mandara uma das criadas levar até o escritório. Quase anoitecia e nada dos homens encerrarem as conversações. Pietra deliciava-se com o que ouvia, escondida entre as estantes de livros. Até se esquecera do horário de suas obrigações, de suas aulas com as preceptoras na outra ala do palácio. Quando percebeu o tempo decorrido deixou cair ao chão o enorme livro que tinha em suas mãos, bem no momento em que subia as escadas para colocá-lo de volta em seu lugar, em uma das estantes.

O barulho chama a atenção do senhor Dupré que corre até onde ela se encontra. Não houve tempo para se esconder. Foi saindo, na ponta dos pés, tentando não ouvir admoestações de seu pai. Mas teve de cruzar a enorme sala do escritório, a fim de ir ao encontro de suas preceptoras.

Ao passar, assustada, ainda, tentando não se fazer notar, era como se fosse uma deusa, uma bailarina, uma fada flanando pelo ar, pensou Luca. Uma fantástica alucinação que deslumbrou seus olhos. Um suspiro de admiração e enlevo deixou escapar. Ela mal percebeu sua presença, tal a angústia em só imaginar o que a esperaria na hora do jantar.

Enfim os visitantes retiraram-se com a promessa de melhor estudarem as condições para que novos produtos pudessem ser importados sem ferir as leis locais.

Pietra não mentiu. Também não se desculpou. Simplesmente, no mais puro dialeto vêneto perguntou ao pai se agora ela poderia ter um vestido com a rica seda chinesa. Disse-lhe que estudava o dialeto vêneto, na sua mais pura origem. E que estudava também o latim.

Não houve admoestações muito sérias. Apenas o pedido para que, quando chegassem pessoas para com ele se reunir no escritório ela seria avisada e mão deveria ficar na biblioteca com os ouvidos em sentinela. Lá se tratavam assuntos de homens.

Luca, que continuava agora a acompanhar seu pai nas reuniões com o senhor Dupré, na esperança única de rever sua musa, ia embora, desolado por ver frustrado seu sonho. Conhecia todos os meandros que interligavam aquela massa de ilhas que formavam a grande Veneza. Descobriu em qual janela Pietra aparecia. Pelas águas em torno do palácio começou a andar, com sua gôndola, sempre que conseguia uma folga nos trabalhos que fazia na organização de seu pai.

O dia amanhecera ensolarado. E Luca, em um momento sutil, conseguia vê-la debruçada em uma das janelas, pensativa, olhando para as águas lá embaixo. Há dias já arquitetara um plano malabarístico. Portara com ele uma longa escada. Encostou sua gôndola no paredão da construção, bem debaixo da janela onde sua musa colocava seus braços. Levava consigo belas e frescas rosas colhidas naquela manhã nos jardins de sua casa. E uma carta, meio em vêneto e até com algumas palavras em latim. Cheio de esperança iniciou, lentamente a subida, degrau por degrau. Estava quase no beiral da janela. Havia treinado a escalada em sua casa. Mas não dentro de algo flutuante nas águas de um canal. Foi num átimo. Num fragmento de segundo. Um vaporeto passa na líquida rua ao lado, em alta velocidade fazendo com que ondas, mais que simples marolas, fizessem sua pequena gôndola balançar. E junto a escada e quem nela se encontrava. Atirou as flores e as cartas sem ver se acertara o alvo. Mergulhou nas águas junto com a escada. Teve que ir embora nadando até uma viela próxima, em terra firme. Remos, canoa e tudo o que dentro se encontrava afundaram no estreito canal.

Com o coração em frangalhos, a roupa molhada e um dolorido corpo cheio de escoriações e equimoses não ouviu a cristalina risada de Pietra. Que não conseguiu segurar as flores que se despetalaram ao encontro das águas e sumiram na correnteza. Conseguira segurar apenas o grosso envelope com as pontas dos dedos.

*Outro trecho de um livro em construção

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