terça-feira, 23

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abril

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2024

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Reminiscências de um patriarca nas montanhas do Tirol

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Era tradição que todos aprendessem a tocar algum instrumento musical

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Fora um ano atípico na história do pequeno vilarejo incrustado entre as montanhas do Tirol austríaco. As nevascas tiveram seu início já nos meados de setembro, antes mesmo que o outono tivesse seu início. Os aldeões que sempre estavam preparados para quando começassem as temperaturas gélidas foram pegos de surpresa. A incógnita permanecia no ar. Havia muito ainda para ser colhido. Muito feno a ser enrolado em fardos e levado aos estábulos e celeiros para servir de alimento ao gado nos terríveis meses em que nem porta afora de seus lares conseguiriam sair.

Um bosque imenso de pinheiros e tílias ao redor de toda a escarpa fornecia o necessário material para que nunca padecessem de frio nos rigorosos invernos que castigavam as encostas do monte onde viviam.

Dos troncos de pinheiros escolhidos foram construídos não apenas a casa mas, também, estábulos, cocheiras, ranchos. Colocados na horizontal, agregados uns aos outros com resinas e uma mistura de cal com argila, para que não restassem frestas por onde os gélidos ventos poderiam penetrar. O edifício principal tinha ainda pedras em sua construção. Pedras extraídas da própria montanha.

A casa era composta de dois pavimentos. O superior era a parte da habitação onde se localizavam os quartos, as salas, a cozinha. Um sótão, a um lance de escada era o local dos guardados. E das brincadeiras e esconderijos das crianças. O inferior, justaposto à montanha era o grande paiol, o local de se guardar a carroça e a carriola e reservado para abrigar a criação nos meses de frio. Os animais ficavam resguardados das intempéries e ajudavam a aquecer o piso superior.

O grande salão era repleto de móveis de todos os tipos e de todas as idades. Cadeiras pesadas, antigas, que já passavam de geração a geração. Uma enorme estante que ia do assoalho ao teto, repleta de livros e documentos da família. Era uma família culta e instruída. Na aldeia, desde os tempos em que o bisavô Gustav era criança, sempre havia um professor que ensinava, além da língua pátria, aritmética, a história da Áustria e dos países que a circundavam. E, claro, em detalhes, a sua exuberante geografia.

Era tradição que todos aprendessem a tocar algum instrumento musical. Um velho piano de cauda tomava todo um canto do grande salão. Sobre ele repousavam violinos, uma cítara, um bandolim, um oboé, um corno e uma velha tuba.

Claro que nem todos os que habitaram aquela casa incrustada nas montanhas tinham vocação e ou talento para seguir uma vida artística. Mas todos aprenderam a tocar algum daqueles instrumentos.

O velho Gustav, que já andava arcado pelos anos, tinha seus cabelos mais brancos que a neve e uma barba que chegava até o peito. Locomovia-se mal com suas articulações já rígidas. Era levado pelos pequenos bisnetos, em uma cadeira transformada em carrinho—com rodas quase do tamanho das rodas de uma bicicleta — de um canto para o outro da grande esplanada que era o varandão que cercava o piso superior. Varandão, todo envidraçado, de onde se podia descortinar o vale, ao longe. Já não enxergava, mas sabia exatamente onde corria o regato de onde trazia gordas trutas para a família jantar, em seus tempos de juventude. Sabia exatamente quantos passos deviam ser percorridos para se chegar às suas margens. E em quantos minutos lá chegaria deslizando com seus esquis nos tempos da estação fria. Mais longe ainda o lago com o céu, agora plúmbeo, a refletir-se em suas águas.

Naquela tarde pediu aos pequenos que o ajudassem a mover sua cadeira bem defronte à grande janela envidraçada do varandão. Queria ver as últimas luzes de um dia de final de verão. Talvez seu último verão, vinha dizendo ele há já uma dúzia de anos.

Olhando os montes ao longe, seu pensamento divagou para o passado. Para o dia em que pela primeira vez encontrou os olhos violeta de sua amada Elfried e a paixão fora imediata. Rememora o casamento deles, o nascimento dos filhos. A labuta diária para cuidarem da casa, das crianças, da criação dos animais e da lavoura. Os filhos crescendo e procurando, cada qual, a sua vida. E as imagens de tantas passagens alegres entremeadas com as tristes foi passando por sua mente.

Helmuth, seu filho mais velho, casou com uma bela moça que conhecera ainda nos tempos em que ia para a escola da aldeia. Evelyn morava com sua família na outra encosta da montanha. Depois de casado continuou morando no casarão. Gustav ficara viúvo, recentemente. Os outros filhos foram morar em diferentes estâncias. Alguns não muito longe dali.

Kurt, o mais novo deles, ao tomar em suas mãos, pela primeira vez, um violino, conseguira demonstrar uma habilidade tão grande que Herr Gustav não titubeou em ensinar-lhe os segredos de como inebriar quem seus solados ouvisse. Diariamente passava horas a estudar com um professor de violino da aldeia. Logo estava além do que ali podia aprender. Primeiro foi enviado a Innsbruck, onde teve lições com um renomado violinista. Seu talento era tão marcante que o próprio mestre levou-o para Salzburg, o coração pulsante da música austríaca, a terra de Wolfgang Amadeus Mozart. Seu talento e obsessão pela música não tardaram a ser notados pelo maestro da mais famosa Orquestra Sinfônica do país. Em poucos meses Kurt tornava-se o Spalla. E com a orquestra conheceu os palcos dos mais famosos teatros do mundo.

As três filhas, Edith, Johanna e Elizabeth casaram-se com rapazes que não poderiam deixar nem as plantações e nem a criação dos animais de suas famílias. E com eles foram morar para além das montanhas que a sua vista alcançava.

Nas comemorações do Natal e da Páscoa reunia-se a grande família. E era quando Gustav matava a saudade de suas meninas e de mais de uma dúzia de netos.

Siegfried, irmão gêmeo de Helmuth, desde pequeno demonstrava um caráter beligerante. Com espadas e fuzis imaginários detonava invisíveis inimigos. Muito cedo ingressou no exército imperial, onde fez astronômica carreira, chegando a comandar vários pelotões no decorrer das batalhas que seu país enfrentou na tentativa de não se submeter a Napoleão.

A última notícia que tiveram de Siegfried, foi um lacônico comunicado enviado por Sua Majestade, o Imperador, de que o valoroso Capitão morrera em combate defendendo a sacra bandeira do Império Austríaco.

Helmuth permaneceu na propriedade ajudando seu pai. A família cresceu. Mais cômodos foram acrescidos à já grande casa feita de pedras e troncos de pinheiros. A criação de gado leiteiro só aumentava. Bem como a de suínos. Adquiriram terras adjacentes, pois mais feno era necessário plantar.

A labuta começava já na madrugada. Tirar, manualmente, leite das vacas. Tratar a criação. Retirar a nata do leitoso líquido branco. Bater a manteiga. Acondicionar leite e manteiga em grandes latões. Atrelar os cavalos no carroção e entregar os produtos para as vilas e cidades vizinhas.

Enquanto isto outros levavam vacas e cavalos para os pastos. Os dias corriam céleres com tanto a se fazer, tanto a se aprender. Feliz ficou Helmuth ao saber que três filhos logo estariam casados e ficariam morando e ajudando na propriedade.

O primeiro a se casar foi Franz. Que encheu a casa de irrequietas crianças, as alegrias de Helmuth e Evelyn. Que viviam felizes com a casa sempre cheia de pessoas alegres e que não mediam esforços para que todo o serviço estivesse sempre de acordo. Todos sabiam que tudo deveria ser feito em tempo hábil para que o inverno não os encontrasse de mãos vazias.

Certo dia Helmuth precisou ir até Innsbruck para assinar alguns documentos que ficaram pendentes. A distância era longa. Sabia que só retornaria no dia seguinte. Evelyn, feliz, acompanhou-o. Queria muito conhecer a cidade brilhante, cheia de luzes e dourados. Embarcaram, felizes, na carriola, puxada pelo melhor cavalo do estábulo. Era um belo dia de final de primavera. A estrada carregada de todos os matizes das flores que pendiam das escarpas.

Era uma nova lua de mel para eles. Ficariam a sós, nem que fosse por apenas uma noite. Distante dos problemas que a já grande propriedade lhes trazia. Felizes, em Innsbruck, visitaram os pontos mais afamados. Hospedaram-se no albergue de um velho conhecido. Após ultimarem as compras e finalizarem as assinaturas no cartório principal embarcaram na carriola para retornar ao lar.

Em uma das inumeráveis curvas da encosta da montanha depararam-se com uma carroça pendurada no desfiladeiro. Helmuth, solícito, apressou-se em ajudar. De seu ângulo de visão vira apenas um homem caído. Foi tudo tão rápido. Evelyn, da carriola, nem conseguiu aperceber-se do que estava acontecendo. Nem um grito o marido soltou. Apenas viu seu vulto a despencar desfiladeiro abaixo. Eram muitos os bandoleiros. Apossaram-se do pequeno veículo, levando-o e à sua passageira com eles. Vendaram –lhe os olhos e amordaçaram-na. Evelyn não se entregou facilmente. Lutou com todas as suas forças. Acostumada a domar cavalos indóceis, lutou furiosamente até receber uma cacetada na cabeça e desmaiar.

Os bandoleiros pensavam encontrar uma fortuna em Ducados de ouro no carro do casal. Como nada havia que justificasse o ato de vandalismo e torturas a que Evelyn fora submetida, acabaram por jogá-la, também, precipício abaixo.

Tiraram da carriola tudo o que o casal levava consigo. Porque, disseram, pelo menos, algum lucro deveriam obter com o pouco que conseguiram. Enquanto discutiam entre eles o que fariam com a carriola e o cavalo ouvem o tropel de uma cavalaria. Perceberam, ao longe, os galões dos soldados a brilhar contra o sol da manhã. Montaram, ágil e rapidamente em suas montarias e sumiram, em desabalada carreira, em direção contrária à dos gendarmes.

Nesse ínterim o cavalo, ainda preso à carriola, desatou a correr só parando ao chegar em casa. Escorchando com as patas nas pedras e soltando agudos e desesperados relinchos foi de pronto ouvido pelas crianças que se debruçaram pela balaustrada que cercava o varandão. Gustav mal viu a carriola vazia e os relinchos, quase uivos do animal, soube, de imediato que uma enorme tragédia teria acontecido.

Desengatou o velho amigo de suas amarras. Pediu aos serviçais—que acorreram pata ver o que teria acontecido—, que cuidassem dele. Correu ao estábulo, encilhou outro igual em desenvoltura e agilidade e partiu estrada afora. Em seu encalço já estavam Franz, Peter e August, os filhos de Helmuth. Cavalgaram mais de uma hora, quando se depararam com os policiais que espantaram o bando de assassinos.

Relataram, rapidamente, os acontecimentos. Estavam frustrados por não terem conseguido encontrar os bandoleiros, que, habilmente, se separam e tomaram cada um os mais diferentes rumos, escondendo-se, com certeza, entre os grotões em meio das escarpas dos montes.

Conseguiram cordas e ganchos com aldeões e moradores das vizinhanças da estrada e foram em busca dos corpos mutilados de Helmuth e Evelyn.

A tristeza e a melancolia abateram-se sobre os pensamentos e os ombros de Gustav. Parecia ter envelhecido cinquenta anos em poucos dias. Mas precisava reagir. Sem Helmuth e Evelyn a família precisava continuar. A propriedade não poderia fenecer. Olhava para o céu e agradecia ao Alto por ter permitido que seus netos ficassem morando com ele. E, como um jovem, cheio de fé, carregado de uma força íntima inesgotável deu a cada um uma incumbência e colocou cada coisa em seu lugar.

Gustav sabia onde encontrar as mais belas flores das montanhas, as legendárias e místicas Edelweiss. Galgava sozinho as escarpas conhecidas, colhendo-as com todo o carinho para depositá-las sobre o túmulo de Elfried, de Helmuth e de Evelyn. E outras mais  sob a velha cruz de ferro, em homenagem a Kurt, o filho que guerra levou.

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