Encharcados, trêmulos de frio, logo viram as lanternas acesas que iluminavam a placa de uma pequena estalagem
Muitos percalços George e Sinead encontrariam ainda na viagem entre o albergue de Cliona e a encantadora Dublin. Haviam deixado a pousada em uma manhã de sol. A estrada parecia tranquila. O cavalo, bem nutrido e descansado, puxava o carreto com enorme disposição.
Perto do meio-dia avistaram um bom local onde poderiam descansar e fazer uma ligeira refeição. A senhora Tierney e Cliona prepararam para eles um farnel com batatas e carne de carneiro assada. Apesar dos alimentos já estarem frios, o organismo agradeceu. Enquanto almoçavam o brioso cavalinho encontrou um suculento capinzal que devorou com prazer.
Felizes e cantarolando— pois acreditavam que naquela noite chegariam ao seu destino—, somente perceberam que não estavam sós quando um carrancudo homem montado em um magro cavalo parou ao lado de George. Com a rapidez de um raio um cintilante punhal já se encontrava encostado em seu pescoço. Ordenou que freasse, de imediato, o cavalo. Logo em seguida o casal estava rodeado por mais três homens mal vestidos e mal encarados. Um deles segurou Sinead pelas costas, enlaçando-a em seus braços, enquanto outro a ameaçava com uma reluzente faca, de bom tamanho, relando seu pescoço, bem junto à jugular esquerda.
De imediato tiraram os arreios do robusto animal que George tratava com tanto carinho.
— Vocês não precisam mais deste belo e vistoso animal. Agora ele é nosso. E podem ir descendo daí que já vamos nos apoderar destes tesouros que estão levando…
Gargalhadas e palmas dos comparsas interromperam a fala do chefe. Num átimo começaram a jogar no chão os sacos que continham os pertences do casal. Vasculharam tudo e nada que lhes interessasse foi encontrado.
George e Sinead, emudecidos pelo susto, pelo inusitado assalto, pela certeza de que nada poderiam fazer, apenas viam, com tristeza, o pouco que tinham, ser atirado ao solo, com intensa brutalidade, uma vez mais. A diferença é que agora, pelo menos, não era na lama.
— É, meus companheiros — afirmava o chefe do bando —, parece que neste ninho não tem ovos de ouro. Mas um bom cavalo temos agora para novas empreitadas.
— Senhor — falou George com humildade —, deixe, por favor, um de seus matungos conosco para que possamos prosseguir nossa viagem.
Gargalhadas e palavras de baixo calão foi a resposta que recebeu. O desespero invadiu sua alma ao ver os arreios jogados ao chão ao lado de sua parca bagagem. Parca, mas era o que tinham de seu. Mais um insano trabalho para a tudo juntar e acomodar no carreto outra vez.
Dentro de tanta angústia um sorriso de satisfação emoldurou sua face. O esconderijo, sob o assoalho do carreto, havia sido tão bem camuflado que o dinheiro reservado para os seus primeiros dias em Dublin e as passagens para a América continuavam incólumes.
O que fariam agora? Tentou, com o maior esforço puxar o veículo com suas próprias mãos. Sinead a seu lado tentava ajudá-lo. Tentava. Logo colocava ambas as mãos em seu ventre e soltava um sussurrado gemido. Enquanto desciam uma colina, com curvas suaves, tudo ia quase bem. Já nas partes planas da estrada seu caminhar se tornou mais difícil, chegando ao impossível quando se defrontaram com um aclive.
Nenhuma estalagem à vista. Algumas árvores distantes em meio ao terreno pedregoso. Restava-lhes pernoitar sob o teto do pequeno carreto. Conseguiram colocá-lo, com grande esforço, para fora da estrada. Sentaram a seu lado. Abriram o farnel para uma última refeição. Sorveram os últimos goles do chá de seu cantil de alumínio. Ficaram a olhar as estrelas. Que logo foram encobertas por grossas nuvens escuras. Uma apreensão maior tomou conta deles. Um prenúncio de tempestade. Que os encontraria em pleno descampado.
O cansaço era tanto que, mesmo com o barulho dos trovões, logo adormeceram.
Subitamente são acordados por um relinchar conhecido perto deles. Algo úmido roçava suas faces. George, de um salto, estava de pé, ao lado de seu fiel cavalo. Envolveu seu pescoço com seus braços. Chorava de emoção. Ajudou Sinead, que chorava também, a levantar-se.
Encilharam o velho amigo. Atrelaram-no ao carreto e no meio da noite seguiram viagem em busca de um pouso. A tempestade encontrou-os antes que conseguissem alcançar um povoado.
Encharcados, trêmulos de frio, logo viram as lanternas acesas que iluminavam a placa de uma pequena estalagem. Seguiram pelo sinuoso caminho que levava à entrada. Pelo burburinho que do lado de fora se ouvia já ficaram a imaginar que o estabelecimento estivesse lotado. Do lado de fora muitos cavalos deleitavam-se junto a cochos plenos de suculenta forragem. Mas o que mais lhes chamou a atenção foi uma carruagem, estilo Vitória, ricamente adornada, estacionada ao lado da entrada. Olharam–se e ficaram a confabular se o preço a pagar pelo pernoite e para uma refeição ligeira não levaria boa parte de suas economias.
Mas o cansaço, a chuva, o frio e, mais que tudo, a necessidade de uma refeição quentinha fê-los decidir-se a desembarcar de seu carreto. Logo na entrada foram recebidos por uma robusta e risonha senhora que já os ajudava a desvencilharem-se de seus agasalhos molhados. Conduziu-os, em seguida, para junto de uma lareira em que um reluzente fogo crepitava.
—Venham para cá meus filhos, venham secar estas roupas e aquecer o corpo. Devem estar enregelados. Uma loucura sair pelas estradas com esta tempestade.
—Senhora—George foi falando—, agradecemos muito a sua gentileza. É que estamos há dias na estrada. Viemos de longe e pretendemos ir até Dublin. Imaginávamos pernoitar aqui, em seu estabelecimento, mas pelo que vejo não há vaga.
—Não, o senhor e a senhora podem pernoitar aqui. Este povo todo que aí está só apareceu quando viu a carruagem do senhor conde parada lá fora. O senhor conde e os seus vassalos só pararam aqui porque uma roda do carro quebrou e enquanto esperavam pelo ferreiro que vinha da aldeia para consertá-la, resolveram ficar tomando uísque e vinho para se aquecerem. Depois foram pedindo para fazermos um assado de carneiro e assim foram ficando.
— Ficamos felizes, dona…
— Gertrudes. Gertrudes é o meu nome e Frederic é o nome do dono. Eu apenas trabalho aqui. Recebo os hóspedes, arrumo os quartos, cozinho e sirvo as mesas.
— Então, como eu ia dizendo dona Gertrudes —continuou George —, ficamos felizes em podermos aqui pernoitar e fazer uma refeição quentinha. Mas preciso primeiro desencilhar meu cavalo de nosso carreto, para que ele descanse e se alimente. Preciso também retirar nossa bagagem que está toda encharcada lá fora.
— Jack! — chamou dona Gertrudes — Venha aqui ajudar o senhor…
— George, dona, George Emple e ela é a minha linda e amada esposa Sinead.
— Jack, ajude o senhor George a desencilhar seu cavalo e a trazer suas bagagens aqui para dentro.
Neste meio tempo um dos vassalos sai porta afora e vê o carreto do casal com aquele belo corcel sob chuva torrencial. Ao perceber George, ao lado de Jack, chegar junto do carreto começou a falar com ele, até arrogantemente.
— Ei, rapaz onde você pensa que vai com este belo corcel roubado?
— Calma, senhor, este cavalo é meu.
— Seu? Mas não mesmo. Nesta tarde nós o vimos por duas vezes Pergunte ao senhor conde.
George tentava conter-se. Depois de tudo o que passara, ser chamado de ladrão de cavalo? Apesar do frio que fazia do lado de fora da pousada, sentia sua face ferver, tal o rubor que dela se apossou.
O vassalo do conde continuava com seus impropérios. George tentava, dentro de seu eu, culpar o uísque e o vinho que deveriam ter tomado conta do cérebro do infeliz. Quando estava a ponto de lhe desferir uma bofetada, surge lá fora o próprio conde.
— Bernard, Bernard, por que estás a demorar-te tanto apenas para ver se nossos pertences e nossos cavalos estavam bem?
— Excelência, senhor Conde, é que quando aqui cheguei encontrei este campônio com um cavalo roubado.
— E como comprovas que ele foi roubado?
— Excelência, senhor Conde, nós já vimos este corcel a atravessar prados e estradas por duas vezes nesta tarde e agora o encontro aqui atrelado a este mísero carreto. Da primeira vez, senhor conde, nós o vimos montado por um homem mal vestido, mas que garbosamente o cavalgava. Estava acompanhado de mais três cavaleiros e junto com eles um matungo sem cela e sem arreios. Mais tarde, antes de chegarmos aqui nesta estalagem, vimos este garboso corcel a solta a cavalgar solitário pelos campos. Certamente os homens soltaram-no para que fosse pastar pela relva macia dos campos por onde passamos. E agora vem este campônio com a maior ousadia afirmar que pertence a ele.
— Jack — falou o conde ao serviçal da estalagem —, cuide do cavalo, pegue as bagagens do moço e vamos todos para dentro conversar ao lado do fogo que aqui fora só continuaremos a jogar nossas palavras ao vento para ficarem congeladas neste frio.
O Conde de Sworth, proprietário de uma grande gleba de terras que ficava mais ao norte, era uma pessoa muito simples. Desde criança, logo que perdera os pais, foi criado ao lado dos camponeses. Fez com que todos se sentassem junto ao fogo e pediu que George relatasse a sua história.
— Senhor Conde — começou George —, estamos na estrada há vários dias já. Inúmeros foram os percalços neste caminho. Para que o senhor nos entenda melhor. O que sobrou do que os meus pais me deixaram resume-se a este cavalo, o carreto e o pouco que nele está acomodado. Este cavalo é meu amigo desde que nasceu. O meu potrinho que me carregou pelos campos e riachos da terra onde fui criado.
Relatou tudo o que passaram ainda em sua gleba de terras, na velha casa que teve de abandonar e que tinha sido já dos avós de seus avós. Por fim, conhecendo, como conhecia todas as manhas de seu fiel cavalo deu uma sugestão ao conde a fim de comprovar não ser um ladrão, como afirmava Bernard.
— Façamos o seguinte. Cada um dos presentes aproximar-se-á do meu corcel. Aquele que receber dele uma lambida no rosto será seu dono para sempre.
O Conde achou pertinente a sugestão de George. Foram todos ao estábulo para onde Jack recolhera o corcel. George fez questão de ficar por último. Ele tinha certeza que seu velho amigo não ficaria lambendo a face de mais ninguém a não ser a sua e a de Sinead. O conde obrigou seu vassalo prepotente a ajoelhar-se diante de George, pedir perdão e ainda pagar o jantar e o vinho para ele e Sinead.
As conversas prolongaram-se noite adentro. O Conde já não tinha mais pressa de ir embora. Ofereceu a George trabalho em suas terras. Mas o casal já sofrera tanto com os arrendatários que tomaram conta de tudo o que seus antepassados haviam construído. Agradeceu, desculpou-se e explicou que seus planos eram outros. Tinham a intenção de já na manhã seguinte partirem para Dublin, onde procurariam se estabelecer, aguardar o nascimento de seu filho e só depois embarcarem em um navio que os levasse para uma nova vida na América.
George e Sinead não conseguiam acreditar no que estavam ouvindo. Imaginavam que demorariam a encontrar um local para morar e mais que tudo, trabalho para sua manutenção.
*Mais um trecho de um livro em elaboração.