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Pedaços de uma Epopeia

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Para alguém como Marcelino que nascera e vivera quase uma vida inteira junto ao mar, esta vida em terra já estava causando arrepios

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Passavam-se os dias, passavam-se as noites e Marcelino não retornava a Curitiba. Passavam-se os dias, passavam-se as noites e de Marcelino nenhuma notícia Thereza recebia. Há mais de um mês partira. Já deveria ter voltado. As viagens jamais duravam tanto tempo.

Nada mais lhe restava a não ser ir até o porto de Antonina. Precisava ver e sentir de perto o que estaria acontecendo.

Em desespero juntou seus últimos tostões, tomou o trem da manhã e desceu a Serra do Mar. Em Morretes a angústia da espera para tomar o trem misto que a levaria ao Porto de Antonina.

Desce do trem, mais angustiada que nunca e enfrenta um mundo desconhecido. Pessoas de todas as espécies perambulando junto ao cais. Navios ao largo, à espera para atracar. O rebuliço do desembarque de pessoas que acabavam de chegar e de outras acotovelando-se tendo ao lado suas imensas bagagens, aguardando o momento de entrarem em alguma embarcação.

Marinheiros sujos, com seus bonés de banda ou com seus gorros estranhos passavam por ela. Ouviu toda a sorte de gracinhas, elogios e palavrões. Informando-se aqui e ali, naquele rebuliço, encontra, por fim, o encarregado do terminal onde Marcelino trabalhava.

Mas seu João nada pode lhe adiantar. Sabia apenas que Marcelino não havia embarcado no navio, conforme havia sido combinado. Disso ele tinha certeza.

— Olha aqui dona Thereza. Aqui estão os nomes de todos os marinheiros e trabalhadores da empresa que embarcaram no navio “Stella matutina”. A senhora pode ver. Não consta o nome dele. Nem neste e em nenhum outro barco desde o dia em que aqui ele esteve. Não entendo como a senhora não teve notícias. Como ele não aparecia, enviamos um telegrama para Curitiba, para saber dele. Precisávamos saber se não queria mais trabalhar conosco ou o que estava acontecendo. Chegou aqui de manhã, neste mesmo horário, neste mesmo trem que a senhora pegou. Fizemos todos os arranjos necessários. Ele é um conhecedor profundo da arte da navegação. Estava escalado como Imediato e não apareceu.

Thereza não queria acreditar no que acabava de ouvir. Precisava retornar naquele mesmo dia para Curitiba. Deixara a pequena Rosina em casa de sua madrinha e garantira que era só conversar com Marcelino e saber porque não dera notícias e, na mesma tarde, retornaria.

Mas precisava agora de mais tempo. Falar com as autoridades policiais. Encontrar Marcelino de qualquer forma era o mais importante para ela.

Foi até a pensão onde ele sempre ficava quando pernoitava em Antonina. A dona de nada sabia. Lembrava-se de que ele ali estivera ainda na parte da manhã, logo depois de ir até o porto, a fim de pegar alguns pertences.

Com a polícia Thereza pouco conseguira de concreto. Mas garantiram-lhe que logo começariam as investigações, uma vez que muitos dias já haviam se passado desde aquele em que pela última vez havia sido visto nas imediações.

Inconformada e sem condições de por lá permanecer, embarcou no trem de volta para a capital. Ao tomar nos braços sua pequena Rosina as lágrimas, em torrente, desandaram.

Onde estaria Marcelino? Teria sumido, sorrateiramente, em outro navio, tomando um rumo desconhecido? Estaria acoitado em casa de alguma amante? Teria embarcado em um navio de grande porte e retornado para a Itália?

Ou… algo pior ainda teria acontecido? Caído no mar enquanto preparavam o cargueiro com o qual viajaria como Imediato? Sim, ela já tinha ouvido falar de homens que, ao prepararem as embarcações são arremessados ao mar pelos grossos cordames que de um lado a outro movimentam-se pelo convés.

Ou… teria sido assassinado e seu corpo jogado ao mar para ser consumido pelos peixes? Um corpo que o mar não devolveria?

Naquela noite Thereza não conseguiu cerrar os olhos. Abraçada com sua menininha ela ficou a imaginar o que seria de sua vida dali em diante.

Logo que se instalaram em Curitiba, parecia que, finalmente, tudo iria dar certo. Tinham suas economias. Marcelino logo colocou o dinheiro num banco. Já havia exercido tantas profissões desde que deixara a Itália que fácil foi conseguir o sustento da família.

Não demorou muito e nascia Rosina. Com extremo cuidado e carinho cuidaram da sua menina, da sua Nena. Que ela sobrevivesse. Que fosse saudável. Que desta vez Santo Antônio, o santo da devoção de Thereza, dela cuidasse. Que mais tragédias não acontecessem com seus filhos. Estavam agora em terra firme. Moravam agora em uma região saudável.

Marcelino arrendou um coche para o transporte de pessoas. A cidade crescera. As pessoas precisavam percorrer longas distâncias. O serviço de bondes era algo novo e não atendia a todas as regiões. Então Marcelino voltou a usar o seu velho fraque e a sua cartola de cocheiro. E pelas ruas da cidade ele corria com seus garbosos cavalos, conduzindo pessoas.

A colônia italiana de Curitiba já era grande. Muitos italianos com seu comércio ou trabalhando como artesãos nas mais variadas profissões. Alguns tinham até suas incipientes indústrias. E todos se davam as mãos.

Mas para alguém como Marcelino que nascera e vivera quase uma vida inteira junto ao mar, esta vida em terra já estava causando arrepios. Dias havia em que exagerava no vinho para que a saudade das águas do Adriático e de tantos outros mares não tomasse conta de seu eu amargurado.

Thereza entendia o que se passava com ele. Sabia que sua vocação, que sua alma era a de um marinheiro errante. E que apenas dentro de um navio singrando os oceanos Marcelino se sentiria bem.

E foi então que apareceu a oportunidade de trabalhar em uma companhia de navegação que operava no porto de Antonina. Thereza incentivou-o para que fosse atrás daquilo que mais amava fazer.

Era uma alegria quando partia para o mar. E outra quando retornava ao seu lar. Sua filhinha estava crescendo e ele longe. Quase não via como ela ia mudando. De tamanho. De agilidade. Não a ouvira pronunciar as primeiras palavras. Mas chorara de emoção quando dela ouviu o primeiro “Papá…”

Ela era bem pequena ainda, uns três anos, talvez — lembrava-se Thereza —, quando Marcelino se sentou na escada da parte de trás da casa e Rosina começou a passar saliva nos cabelos dele, dizendo que iria penteá-lo e deixá-lo bem bonitinho. Sim, a saliva era o fixador e as mãozinhas dela o pente. E ele sorria de felicidade…

Enquanto Marcelino estava fora e não dava notícias a despensa da casa exauriu-se. Novas contas começaram a aparecer. Então Thereza inventou mil coisas para vender. Sabia de seus dotes culinários. Começou fazendo massas em casa. Massas de todos os tipos. E saía pelas ruas, vendendo os seus produtos de casa em casa.

Mas uma indústria de São Paulo começou a colocar macarrão no mercado. Mais em conta para os consumidores. E esta fábrica precisava de uma grande quantidade de ovos para atender a freguesia que se espalhava pelo país afora.

Lendo o jornal que circulava na comunidade italiana Thereza viu a mensagem do proprietário da grande fábrica. Pagava bom preço pelos ovos. Viessem de onde viessem. E garantia comprar tudo o que às suas mãos chegasse. Porque, sem ovos, italiano que se preze não faz as deliciosas massas que embevecem o paladar.

Thereza conhecia os segredos de conservar os ovos por longos períodos. Aprendera este processo desde menina na vila em que nascera, na Vila de San Michelle, em Verona, na Itália.

Com as sobras das vendas de suas massas e mais das roupas de tricô que fazia, conseguiu comprar uma grande quantidade de cal virgem. Com o bom relacionamento que tinha com os comerciantes da redondeza foi juntando latas e mais latas vazias de azeite. Eram latas com capacidade para vinte litros de líquido.

Pacientemente foi adquirindo ovos em toda a periferia da cidade. Para alguns pagou com o que pode. Para outros pediu um tempo. Contou-lhes o que estava planejando. E se o comprador de São Paulo, que era dono já de uma grande indústria, pagasse um preço melhor na hora da entrega, ela repassaria este lucro também.

Dia após dia ela ia embalando os ovos envoltos em uma mistura de água e cal. Enfileirados de baixo até o topo da lata, que depois era fechada com solda. Juntou uma enormidade de latas. Centenas de grosas de ovos.

E numa bela manhã despachou tudo de trem para Paranaguá. E ela junto de sua preciosa carga. Acompanhou o desembarque das latas do bagageiro, na estação ferroviária que ficava distante do porto. Teve que tomar um carreto de aluguel para chegar até o ponto onde já se encontrava atracado o navio a vapor que a levaria até Santos.

Ficou ao lado dos carregadores que retiraram suas latas recheadas de ovos conservados em cal virgem umedecido. Fiscalizou até o serviço dos encarregados de acomodar os produtos no porão de navio. E só depois de ver que tudo estava de acordo como ela queria, subiu as escadarias que a levaram, primeiramente ao convés onde pode desfrutar da visão do mar. Do mesmo turbulento mar que há mais de uma década um pedaço de sua vida levara. Será que este mesmo levara agora o seu amor também? E assim, envolta em pensamentos, acomodou sua parca bagagem na minúscula cabine que compartilhava com mais três mulheres.

Thereza viajava feliz. Enquanto apreciava o ir e vir das ondas do mar, sentada em confortável espreguiçadeira no convés da embarcação, comia os quitutes que trouxera de casa. Alimentos não perecíveis. Do farnel que ela mesmo preparara antes da partida.

Alimentava-se frugalmente. Contava os tostões que levara consigo. Os últimos que sobraram depois de haver comprado os ovos dos colonos e as passagens de trem e de barco a vapor.

O pequeno navio singrava pelas águas do Atlântico, não muito longe da costa brasileira.

*Mais um capítulo de um livro em elaboração

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