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Pedaços de uma Epopeia — Uma viagem frustrada

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O comboio galgava a Serra do Mar, com seu sistema de cremalheiras

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Thereza deslizava a lã entre as agulhas do tricô enquanto o barco que a levaria até Santos deslizava sobre as águas do Atlântico. Sentada em uma espreguiçadeira no convés, enquanto tecia a blusa para a sua Neninha, fazia planos para sua vida futura. Com a renda da venda dos ovos montaria uma pequena trattoria. Tinha certeza que com seus dotes culinários conseguiria sobreviver.

O barco a vapor viajava lentamente ao longo da costa. Por muitas vezes tirava os olhos de suas agulhas, alongava-os para o horizonte distante e ficava a imaginar em que ponto daquele mar imenso estaria o seu Marcelino. Não, ele não a abandonara. Não, ele não a trocaria por nenhuma outra mulher no mundo. Viveram uma vida feliz depois que se conheceram. Tinham à sua frente tesouros a descobrir. Lembrava-se dos trabalhos dos primeiros tempos. Ele singrando pelos canais de Veneza ou ajudando os Cailoto no amaino da terra nos arredores de Verona. Nascera o seu lindo bambino, de olhos azuis como ela e altaneiro como o pai. Seu pequeno Enzo que fora levado para as profundezas do mar. Com os olhos marejados continuava sua tarefa na vã tentativa de enviar estes tristes pensares para outras esferas.

Encontravam-se ainda a muitas milhas náuticas do porto de destino, quando, subitamente, ainda em alto mar, com um solavanco que inundou até o convés superior com uma enxurrada de água salgada, estanca o navio.

Marinheiros corriam. O comandante em pessoa, através de uma corneta — para aumentar o volume de sua voz — implorava paciência e colaboração dos passageiros. Afirmava que o barco sofrera uma pequena avaria e logo a viagem prosseguiria calmamente.

Passavam-se as horas, passavam-se os dias e o barco à deriva. Mensagens enviadas com pedido de socorro não tinham resposta. Será que até os sinais do telégrafo sem fio também estariam encontrando obstáculos? Nenhum navio à vista para auxiliá-los.

Thereza sempre tão otimista começava a se preocupar. Sua preciosa carga poderia ser considerada quase uma carga viva. O calor no litoral era abrasador. Muito diferente do suave clima do planalto curitibano onde vivia. Mesmo acondicionados em cal os ovos não suportariam por tantos dias aquelas altas temperaturas. Mas ela tinha fé. Continuava, nervosamente, a tricotar enquanto fazia suas preces a Santo Antônio.

Finalmente, depois de alguns dias, atraca ao lado um barco que levaria alguns passageiros até Santos. Mas como seu porão já se encontrava abarrotado de mercadorias não poderia acomodar nem um pequeno caixote a mais. O que restava a Thereza era ter paciência e resignação e permanecer lá mesmo à espera.

Os alimentos que trouxera de casa já haviam sido consumidos por ela e por suas companheiras de cabine a quem, prontamente Thereza oferecia o seu farnel. A pouca comida que restava na despensa do barco era dividida, racionalmente, em pequenas porções entre os viajantes remanescentes.

Finalmente um navio da mesma companhia conseguiu chegar e o transbordo foi efetuado. Lentamente. Porque toda a carga deveria ser também levada para os porões do barco reserva. Foi então que Thereza soltou um gemido. A carga não era levada com cuidado. Era atirada de um convés para o outro.

Após deixarem o local onde o navio avariado ficara, uma tempestade igual ou superior àquela em que o seu Enzo fora atirado para o mar, atingiu-os em cheio. A embarcação virava para todos os lados. Parecia que logo naufragaria tal o aguaceiro que a tudo inundava. Imensas ondas entrechocavam-se de todos os lados. O pavor de Thereza aumentou. Não, ela não temia a tempestade com seus raios, ventos e trovões. Ficava a imaginar as suas latas chocando-se em meio a outras cargas, ao sabor do balanço do mar.

Muitas horas a mais de viagem ainda. Com maior lentidão venciam, aos poucos, algumas milhas. Já era noite quando ela avistou luzes na costa ao longe. Mas muitas horas ainda levaram para chegar ao seu destino.

Era madrugada quando aportaram em Santos. Passageiros exaustos ainda precisavam aguardar mais algum tempo para que seus pertences chegassem ao cais onde, finalmente, desembarcaram.

Ela não seguiu o rumo dos demais. Ficou aguardando o desembarque de sua mercadoria. Uma desolação só quando observou que algumas latas se encontravam estufadas, outras avariadas, amassadas e até com muitos pertuitos por onde escorria uma gosma esbranquiçada com alguns laivos amarelados.

Nem mais imaginava. Tinha certeza de que o conteúdo daquelas já para nada serviria. Ainda sobraram muitas com bom aspecto. Alugou ali mesmo um carreto para transportar as que julgava em bom estado diretamente para o trem que logo tomaria em direção à capital paulista.

O comboio galgava a Serra do Mar, com seu sistema de cremalheiras. Foram muitas horas de viagem até desembarcar na magnífica Estação da Luz. Nem se preocupou em procurar um hotel. Já ao descer do vagão avistou um carreto de bom tamanho que poderia transportar sua carga até a fábrica de massas. Feliz da vida, pois finalmente chegava a seu destino, embarcou ao lado do jovem carreteiro.

Apresentou-se na portaria do grande edifício que comportava os escritórios da empresa. Mostrou a carta que confirmava sua vinda desde Curitiba, com imensa quantidade de ovos. Explicou-lhes as razões da demora.

Logo vieram os encarregados para descarregar as latas. Empilharam-nas em um pavilhão onde o produto ficaria armazenado. Thereza ao lado observando, impaciente e nervosa, abertura das latas e a conferência de seu conteúdo.

Foi então que o mundo desmoronou. A frustração foi imensa. Uma tontura tomou conta dela. Não pelo mau cheiro que exalava ao se abrir lata por lata. Pelo desconforto em sua mente que de imediato não encontrava uma saída para o seu futuro.

Nada receberia depois de tanto sacrifício. Não tinha dinheiro para as passagens de volta a Curitiba. Mas não derramou uma lágrima na frente daqueles circunspectos senhores à sua frente.

Ofereceram-lhe uma cadeira para, enfim, acomodar-se. Um cafezinho. Um copo d’água. Aceitou. Respirou profundamente. E, com a maior fingida calma de sua vida lhes perguntou:

— Algum dos senhores poderia me informar em qual jornal posso ver se alguém nesta cidade está precisando de uma excelente cozinheira?

Estupefatos com a calma, o penetrante olhar, a voz firme e o porte altaneiro daquela bela mulher que estava à frente de um prejuízo descomunal em sua vida, mudos se quedaram.

Subitamente, um dos mais jovens, admirado ainda com a cena que jamais imaginaria em sua vida, chegou perto e lhe disse que ela nem precisaria procurar em um jornal, pois a família do próprio dono da fábrica poderia contratá-la.

O rapaz pediu que lhe trouxessem seu coche. Acomodou nele Thereza e seus pertences e partiram em direção à mansão onde morava a família do industrial italiano.

Foi muito bem recebida. A governanta levou-a até a parte onde ficavam os aposentos da criadagem e, com um cínico sorriso já ia especulando sobre sua vida. Como conseguira, em um minuto, aquele emprego para o qual tantas já haviam sido dispensadas. Ela não soube explicar.

A primeira coisa que fez após um demorado e repousante banho foi escrever uma minuciosa carta para a sua Neninha, contando tudo e explicando que por muito tempo ainda ela deveria continuar morando na casa de sua madrinha.

Thereza precisava trabalhar, não apenas para adquirir as passagens de trem e de navio de volta para casa, mas também o montante que deveria pagar aos colonos conterrâneos que, confiantes em seu tino, entregaram-lhe a sua mercadoria.

Ela não entendia como aquele jovem acreditou nela, assim tão de imediato e a levou para ser cozinheira de sua própria família.

Nem mesmo desconfiou de outras intenções, quando o via, por dias seguidos, a rodear o grande fogão da cozinha, em torno dela, a lhe perguntar sobre temperos, sobre molhos, sobre as mais diversas iguarias que ela, com maestria, preparava.

 Com a majestade que de seus olhos fulgurava ela sempre conseguia responder a todas as suas inquisições e conseguir com que ele jamais ultrapassasse a barreira que os separava.

Trabalhava com amor porque fazia o que mais amava fazer. Deixava a família embasbacada com a variedade de massas que elaborava. E embora cozinhasse para a família que fabricava macarrão e congêneres ela jamais deixou de, diariamente, preparar as suas massas, artesanalmente, na grande cozinha da mansão dos abastados italianos.

Quase um ano se passara quando ela julgou que já havia conseguido uma importância suficiente para resolver os seus problemas imediatos e ainda montar em Curitiba a trattoria de seus sonhos.

(Mais um capítulo de um livro em elaboração)

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