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Ostra feliz não faz pérola

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O incomensurável das narrativas mínimas

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A brevidade dos textos que compõem a obra “Ostra feliz não faz pérola”, do pedagogo, poeta, cronista, contador de histórias, ensaísta, teólogo e psicanalista Rubem Alves, é desproporcional ao impacto que causam, na medida em que, embora narrativas curtas em extensão de parágrafos, são infindáveis nas provocações reflexivas.

O próprio título do livro é um convite ao profundo pensar, uma vez que remete ao fato da requintada pérola ser o produto de um incômodo da ostra, isto é, uma alegoria para demonstrar que a arte e as mudanças frutíferas são resultados das inquietações. Dessa forma, o status quo é um impedimento à criatividade, uma vez que só criamos quando estamos tentados ao novo, ou quando insatisfeitos com alguma situação ou ideia.

Os temas do livro são diversos, colhidos da cotidianidade, dos questionamentos e da contemplação. Podemos analisar sob vários aspectos, e me deterei ao mote do papel do escritor. A grande maioria das obras literárias geniais abordam a própria escritura como tema, e Rubem Alves o faz com maestria. Ele direciona, por exemplo, a entender o significado, e a magnificência, dos minirelatos: “um aforismo é um relâmpago: brevíssimo, ilumina os céus. Por vezes racha rochas. Muitos cérebros são rochas” (ALVES, 2014, p.63). Assim, a micronarrativa causa modificações e, dessa forma, age, sendo ampliadora de horizontes, de visões de mundo e executando a máxima de que uma mente que se abriu – com o estrondo metafórico – jamais será a mesma.

Também sugere, para aqueles que desejam se iniciar no universo da escrita, um ritual profícuo e encantatório:

Catar conchinhas... Eis aí uma deliciosa brincadeira para quem deseja ser escritor. A alma é um grande mar que vai depositando conchinhas no pensamento. É preciso guardá-las. Quem deseja ser escritor há de aprender com as crianças a catar conchinhas, pensamentos avulsos como esses com que estou brincando, e guardá-los num caderninho. De Camus, o livro que mais amo – e por isso releio sempre – são os seus Cadernos da juventude. Ali ele anotava o voo dos pássaros, uma trovoada, uma nesga azul no céu de tempestade, uma citação que lhe vinha à cabeça, um diálogo entre marido e mulher. Nietzsche também colecionava conchinhas que ele transformava em aforismos. O problema com os aprendizes é que eles pensam que literatura se faz com coisas importantes. O que torna a conchinha importante não é o seu tamanho, mas o fato de que alguém a cata da areia e a mostra para quem não a viu: “Veja...”. Literatura é mostrar conchinhas... (ALVES, 2014, p.57).

Ou seja, a grande maioria das obras literárias trata de assuntos triviais e perfunctórios, e o que as torna grandiosas é a maneira com que narram os fatos e descrevem as personagens e, assim, os impactos que causam. Como é o caso de um de seus textos, o qual discorre sobre os ipês. A princípio, é um tema banal, não obstante a abordagem vocabular e estilística ser primorosa:

Aí eu vi um ipê florido e o haicai saiu: “Na cidade amedrontada os ipês-amarelos florescem”. Os ipês amarelos estão floridos de novo. Voltam sempre, no mesmo tempo, na ordem certa. Em julho florescem os ipês-rosas. Em agosto, os amarelos. Em setembro, os brancos. De todos, os mais desavergonhados são os ipês-amarelos. Minivulcões em erupções de alegria. É bom ver sua copa amarela, sem uma única folha, contra o céu azul. Alguns deles, fui eu que plantei. Mas são poucos os que se assombram e param para vê-los. Acho um ipê-amarelo florido um milagre maior que um cego ver ou um paralítico andar (ALVES, 2014, p.100).

Além disso, adverte aos desavisados que, apesar de alguns textos parecerem simples devido à brevidade, são justamente complexos por abarcar um mundo de ideias em poucas palavras e, assim, clamam por uma degustação lenta e uma análise acurada, como vemos no excerto abaixo:

Ler rapidamente aquilo que o autor levou anos para pensar é um desrespeito. É certo que os pensamentos, por vezes, surgem rapidamente, como um relâmpago. Mas a gravidez é sempre longa. Há frases que resumem uma vida. Por isso é preciso ler vagarosamente, prestando atenção nas ideias que se escondem nos silêncios que há entre as palavras. Eu gostaria que me lessem assim. Quer eu escreva como um poeta, no esforço para mostrar a beleza, ou como palhaço, no esforço para mostrar o ridículo, é sempre a minha carne que se encontra nas minhas palavras (ALVES, 2014, p.145).

E enfatiza a premissa, a qual eu compactuo, de que a maior vantagem de ler textos literários é poder exercer a empatia, isto é, ser capaz de se imiscuir em outras mentes, corpos, localidades, épocas e situações e, destarte, ampliar o processo de compreensão do mundo que nos cerca e, sobremaneira, de humanização. Isso barra a repetição de equívocos de outrora e impede o crescimento de padrões preconceituosos e de atos repugnantes, como as atrocidades bélicas, a misoginia, e as segregações raciais, classiais ou de gênero.

Ao se embrenhar nas páginas de “Ostra feliz não faz pérola”, você terá a sua disposição material para erupções mentais altamente produtivas e assimilará o que o autor afirma acerca da relação obra-leitor:

Por que se gosta de um autor? Gosta-se de um autor quando, ao lê-lo, tem-se a experiência de comunhão. Arte é isso: comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles. Ao lê-lo eu me leio, melhor me entendo. Somos do mesmo sangue, companheiros no mesmo mundo. Não importa que o autor já tenha morrido há séculos... (ALVES, 2014, p.178-179).

(ALVES, Rubens. Ostra feliz não faz pérola. 2 ed. São Paulo: Planeta, 2014).

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