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Os Sertões

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Rebuscamento formal e preconceito

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É possível analisar a monumental obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, a partir de duas perspectivas, a saber: a estilística e a histórico-social.

Na primeira, é incomparável em seu gênero, na medida em que o rebuscamento da linguagem e a escolha vocabular é superior até mesmo aos outros grandes literatos consagrados pelo estilo único e experimental, como os geniais Guimarães Rosa, Machado de Assis, José Lezama Lema e James Joyce.

A linguagem densa e a sintática arduamente trabalhada fazem com que grandes leitores e analistas literários, acostumados com os jogos semânticos, releiam cada parágrafo, ou para realmente compreendê-lo, ou para praticar a mais satisfatória das sensações: o estranhamento. No bom sentido, isto é, aquele que você para e pensa: como é possível ter tanto domínio dos vocábulos e escrever de uma maneira tão exímia?

O estilo barroco, amalgamando o conceptismo e o cultismo, pode ser constatado desde as primeiras frases, como se evidencia no excerto abaixo, que descreve a paisagem sertaneja:

Por qualquer vereda sucedem-se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam os caminhos, quando não se justapõem por muitas léguas aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar a fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e das voragens... (CUNHA, 2003, p.34)

Ou quando Euclides da Cunha exerce sua genialidade linguística descrevendo a morte de um combatente, pois a mesma poderia ter sido redigida em tom jornalístico, como uma mera notícia, mas ele o faz de forma suprema: “O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava… havia três meses” (CUNHA, 2003, p.46).

A narrativa é dividida em três partes – A terra, O homem, A luta – e, a princípio, o leitor pode considerar a primeira enfadonha, com suas enormes descrições paisagísticas. No entanto, logo percebe que é de suma importância para, mais adiante, constatar a simbiose que existe entre esses três elementos, além de se deleitar com os incomparáveis detalhamentos:

O umbuzeiro é a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto – e veio descaindo, pouco a pouco, numa intercadência de estilos flamívomos e invernos torrenciais, modificando-se à feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das reservas guardadas em grande cópia nas raízes (CUNHA, 2003, p.59).

Muito embora essa belíssima linguagem erudita e a dinâmica da sintaxe que causa admiração vitalícia no leitor, “Os Sertões” é, sob a perspectiva histórico-social, a pior obra literária que eu já li em minha trajetória acadêmica, uma vez que escancara e reafirma o mais grotesco que há no ser humano, a saber: o preconceito. Euclides da Cunha é munido do estigma segregador ao redigir as rebuscadas páginas de sua narrativa épica. Embrenhada à bela escolha vocabular está o brutal preconceito contra os sertanejos e contra a diversidade, como podemos tristemente constatar neste parágrafo infeliz:

A mistura de raças é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades proeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço – traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremamente, através de largos períodos entre os quais a história é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou destroem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço – mulato, mameluco ou cafuz -, menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores (CUNHA, 2003, p.111).

O preconceito é reforçado a cada linha, sobretudo na segunda parte do enredo denominada “O homem”, em que Euclides da Cunha tenta entender as peculiaridades do sertanejo da época da Guerra de Canudos. Entretanto, o que faz é desmerecê-lo e perpetuar a segregação. Ao destrinchar, sob sua ótica desprezível, a religião do povo do sertão, destila maldade e a ignorância de quem se considera superior e, ademais, acredita que há religião ou crença “melhor” do que outra:

Insulado deste modo no país, que não o conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta. O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. É o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas (CUNHA, 2003, p.136).

E na terceira parte – A luta – o autor retrata os soldados sertanejos, ou seja, os que se opunham à instauração do regime republicano, como inferiores, desalmados e fanáticos. Para ele, numa visão extremamente simplista, somente o exército governamental tinha motivos para guerrear, ao passo que os jagunços o faziam sem estratégias e razões. Ele subestima as armas que eles utilizam para ridicularizá-los, quando deveria usar esse fato para fazer uma crítica sobre a iníqua desigualdade social presente antes, durante e depois do conflito armado.

Ao longo das descrições sobre as batalhas, a fusão entre o homem, o meio e a guerra vão se adensando, como é perceptível: “Deslembravam-se do inimigo. A ferocidade do jagunço era balanceada pela selvatiqueza da terra” (CUNHA, 2003, p.418). Próximo ao fim do combate, quando a baixa do exército sertanejo é grande e começam os massacres praticados pelos republicanos, o autor, por um breve período, se compadece com a brutalidade das degolas, porém enaltece seu preconceito ao afirmar que, apesar de serem menos sanguinários eram, segundo sua análise, atrasados intelectualmente:

O soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão. Um golpe único, entrando pelo baixo-ventre. Um destripamento rápido... Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades (CUNHA, 2003, p.493).

Além disso, para se coroar como o escritor mais preconceituoso da Literatura Brasileira, Euclides da Cunha também pratica a misoginia, afirmando que os militares poupavam crianças e mulheres, mas apenas se estas últimas não se mostrassem opinativas. No excerto que segue, ele reafirma o preconceito na vertente machista quando descreve uma senhora que foi interrogada pela tropa e, ao não se portar da forma apropriada segundo seus preceitos elitistas, não merecia misericórdia:

E tinha a gesticulação incorreta, desabrida e livre. Irritou. Era um virago perigoso. Não merecia o bem-querer dos triunfadores. Ao sair da barraca, um alferes e algumas praças seguraram-na. Aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa agourentando a vitória próxima – foi degolada... Poupavam-se as tímidas, em geral consideradas trambolhos incômodos no acampamento, atravancando-o, como bruacas imprestáveis (CUNHA, 2003, p.497).

Assim, conclui-se que, sob as duas vertentes supramencionadas, isto é, a estilística e a histórico-social, é recomendado ler “Os Sertões”, pois, com a primeira, nos apaixonamos pela inigualável capacidade linguística do escritor e, com a segunda, o detestamos por imortalizar uma narrativa preconceituosa.

(CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003).

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