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O Sonho do Celta

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O livro é dividido por três lugares nos quais o protagonista trabalhou

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O peruano Mario Vargas Llosa, que é Prêmio Nobel de Literatura, na sua obra “O sonho do celta”, reconstitui, numa narrativa biográfica ficcional, a trajetória do diplomata militante Roger Casement.

O livro é dividido em três partes – Congo, Amazônia e Irlanda – justamente os três lugares nos quais o protagonista trabalhou e, nos dois primeiros, testemunhou as faces horrendas da exploração humana e ambiental em prol do comércio e, no último, os conflitos de um país para se desvencilhar do imperialismo.

No início do século XX, houve, em algumas partes do mundo, como África e Brasil, o boom da borracha e, com ele, a corrida gananciosa para exploração da mesma e para obtenção de lucro. Uma vez que a retirada desse material é rudimentar e num contexto hostil, as péssimas condições oferecidas aos trabalhadores resultaram em inúmeras mortes, por doenças, violência ou fome.

Roger Casement, a serviço do Império Britânico testemunhou, no Congo, as atrocidades cometidas em nome da “colonização” desta região, como podemos constatar no excerto abaixo:

As explicações dos agentes do governo, dos empregados das companhias seringalistas e dos oficiais da Force Publique eram sempre as mesmas: os negros morriam como moscas por causa da doença do sono, da varíola, do tifo, dos resfriados, das pneumonias, das febres palúdicas e outras pragas que, por causa da má alimentação, dizimavam seus organismos não preparados para resistir às doenças. Era mesmo verdade, as epidemias faziam estragos. A doença do sono, sobretudo, resultante, como se havia descoberto poucos anos antes, da mosca tsé-tsé, atacava o sangue e o cérebro, provocava nas vítimas paralisia dos membros e uma letargia das quais nunca mais sairiam. Mas, a essa altura da viagem, Roger Casement ainda perguntava a razão do despovoamento do Congo, não em busca de respostas, mas para confirmar que as mentiras que ouvia não passavam de chavões repetidos por todos. Ele sabia muito bem a resposta. A praga que tinha volatilizado boa parte dos congoleses do Médio e Alto Congo era a cobiça, a crueldade, a borracha, a desumanidade do sistema, a exploração implacável dos africanos pelos colonos europeus (LLOSA, 2011, p.73).

Ele também narra a maneira errônea, preconceituosa e desumana com que os europeus descrevem os africanos e, ato contínuo, as violências executadas, como podemos ver neste excerto, em que Casement questiona e se opõe às torturas praticadas, e o capitão responsável redargue: “Vá fazer esses bichos de duas patas entenderem o que são as leis e regulamentos. O senhor não os conhece? Com tantos anos no Congo, deveria. É mais fácil fazer uma hiena ou um carrapato entenderem as coisas que um congolês” (LLOSA, 2011, p.78).

As inúmeras perversidades que presenciou no Congo o impulsionaram para chegar à sua próxima missão diplomática – a Amazônia – apto para contestar os preceitos capitalistas atrozes contra a população indígena praticados pela Peruvian Amazon Company em sua busca por lucros obtidos com a borracha. Assim, nos é revelado os efeitos da busca desenfreada pelo capital sem restrições ou respeito com o ambiente ou com as pessoas.

Na região amazônica peruana, teve muitos embates com as autoridades britânicas, pois concebiam seu processo exploratório e violento como um favor ao povo ameríndio em prol da modernização desta região. No entanto, os meios utilizados iam contra os direitos humanos. Por isso, Roger admoesta: “A Amazônia é um grande empório de riquezas, sem dúvida […]. É muito justo que o Peru as aproveite. Mas sem abusar dos nativos, sem caçá-los como animais e sem trabalho escravo. Ou, ainda melhor, incorporando-os à civilização com escolas, hospitais, igrejas” (LLOSA, 2011, p.182).

Enquanto os europeus alegavam ser necessária a violência para disciplinar os indígenas que consideravam preguiçosos, o diplomata escancara a realidade que presenciara, na qual os britânicos que estavam na missão amazônica:

[…] eram meros carcereiros, torturadores e exploradores indígenas. Passavam o dia todo deitados, fumando, bebendo, divertindo-se, chutando uma bola, contando piadas ou dando ordens. Todo o trabalho recaía sobre os índios: construir moradias, consertar os tetos danificados pelas chuvas, reparar o caminho que descia até o cais, lavar, limpar, carregar, cozinhar, levar e trazer coisas e, no pouco tempo livre que sobrava, cultivar os seus roçados sem os quais não teriam o que comer (LLOSA, 2011, p.202).

O excesso de injustiças que testemunhou o afetou ao ponto de temer por seu equilíbrio mental, não obstante servir para alimentar sua repulsa à poda da liberdade e aos abusos dos que se julgam superiores:

Será que a sanidade do seu espírito resistiria a todo esse horror cotidiano? Ficava prostrado ao pensar que na civilizada Inglaterra poucos acreditariam que os “brancos” e “mestiços” do Putumayo podiam chegar a tais extremos de ferocidade. Mais uma vez seria acusado de exagero e preconceito, de agigantar os abusos para dar mais dramaticidade ao seu relatório (LLOSA, 2011, p.212).

Ao finalizar sua missão nas terras amazônicas, Roger Casement idealiza que não mais haja, por parte dos “colonizadores”, sequestro de índios, castigos nos cepos a chicotadas, trabalho não remunerado, estupro das indígenas, e que paguem indenização às famílias dos assassinados, queimados vivos e daqueles que tiveram orelhas, narizes, mãos e pés cortados. Além disso, “Que parem de roubar os seringueiros com balanças adulteradas e preços multiplicados no armazém para mantê-los como devedores eternos da Companhia” (LLOSA, 2011, p.217).

Seguindo para seu último destino diplomático, que é também o derradeiro capítulo do livro, Casement volta a sua terra natal munido da vontade inegociável de lutar pela tardia liberdade de sua nação, que só se emanciparia da Inglaterra em 1921. Depois de conviver com as diversas manifestações da crueldade executadas no Congo e na Amazônia em prol dos lucros e da dominação territorial, ele tornou a liberdade o mote de sua vida: “A solução era a independência, pura e simplesmente, e ela jamais seria concedida de bom grado” (LLOSA, 2011, p.341).

Os donos do poder não perdoaram as suas denúncias contra o neocolonialismo, tampouco sua luta pela independência irlandesa, a qual foi considerada traição à pátria britânica pela qual trabalhava como diplomata. Em 1916, no auge da Primeira Guerra Mundial, foi executado no centro de Londres porque atuara no Levante da Páscoa, na Irlanda. No entanto, seu legado permanece, a saber, o de ser um dos grandes lutadores anticolonialistas e defensores dos direitos humanos e das culturas indígenas, e um combatente pela emancipação da Irlanda:

A vida que teve, com todos os seus percalços, ainda era preferível. Tinha visto o mundo, seu horizonte se ampliou enormemente, ele entendeu melhor a vida, a realidade humana, as entranhas do colonialismo, a tragédia de tantos povos por culpa dessa aberração (LLOSA, 2011, p.119).

Além da genialidade de Mario Vargas Llosa de redigir um romance histórico na contemporaneidade, a sua obra merece ser lida por trazer à tona a trajetória e as facetas de Roger Casement, nos três espaços geográficos em que trabalhou.

Outro ponto de extrema importância que é ressaltado no enredo, e tão absurdo quanto o imperialismo europeu justificar a crueldade em nome da modernização, é desmerecer a herança humanitária deixada pelo protagonista tentando impor o esquecimento forçado de seus atos, distorcendo seus relatos e suas intenções. Por isso, a narrativa de Vargas Llosa é uma preciosidade histórica e mnemônica, uma homenagem ao herói que foi executado por desejar a igualdade social e a liberdade. Ademais, traz nas entrelinhas o apelo para que jamais permitamos a sobreposição de uma nação, isto é, o avanço de um neocolonialismo.

(LLOSA, Mario Vargas. O sonho do celta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011).
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