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O Pequeno Príncipe Aleijadinho

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Um “conto de fada” muito peculiar

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É espantoso quantas mudanças acontecem em dois séculos, ao mesmo tempo em que é assombroso como muitas situações se perpetuam, oscilam e retornam, sobretudo as menos agradáveis. Nesse ínterim, a Literatura é um instrumento eficaz para comprovar as transformações e as manutenções.

A narrativa “O Pequeno Príncipe Aleijadinho”, que foi escrita e publicada em meados do século dezenove, pela escritora inglesa Dinah Maria Mulock Craik, mostra, desde o título questionável, o panorama segregador que as pessoas com algum tipo de deficiência sofriam, mesmo que oriundas da família Real.

No enredo, o infante príncipe Dolor, após o falecimento de seus pais, que eram o rei e a rainha do Reino de Ninguém, é exilado por seu tio para uma torre por dois motivos: o estereotipado meio eficaz de tirar de cena o herdeiro direto do trono para que outro consanguíneo assumisse, e porque o menino tinha uma deficiência nas pernas que o impedia de caminhar. Esse detalhe torna a obra original e audaciosa, uma vez que, na época de sua publicação, era inconcebível declarar que um membro da nobreza poderia apresentar uma doença, disfunção ou sequela que o afastasse do padrão de perfeição.

Além disso, a autora fez uma espécie de denúncia social, na medida em que deixou registrado os maus-tratos e a violência psicológica que eram praticados com as pessoas com características especiais. O Rei, por exemplo, quando soube da condição de seu filho, logo o desprezou: “É horrível… horrível! Principalmente para um príncipe” (CRAIK, 1967, p.26). O menino fora isolado em uma torre, a qual pode ser interpretada como uma metáfora para os relatos de famílias cujos filhos nascidos com algum tipo de deficiência eram escondidos e impedidos de participar das estâncias sociais.

Dinah Maria Mulock Craik é muito perspicaz ao dissimular sua crítica à segregação nas entrelinhas de uma história aparentemente infantil, como podemos ver no excerto abaixo:

Se algum leitor, grande ou pequeno, desejar saber se existe nesta história a intenção de torná-la mais profunda que os contos de fadas comuns, confesso que sim. No entanto, a disfarcei com tanto cuidado que os meninos leitores, e muitos dos adultos, jamais irão descobri-la, de modo que este pequeno livro pode ser lido como A Gata Borralheira, O Barba-azul, ou O Pequeno Polegar apenas pelo interesse e divertimento que possa proporcionar. Dito isso, volto ao Príncipe Dolor, o pequeno aleijadinho que tanta gente poderá julgar digno de pena. Mas se o tivessem visto ali sentado a desatar pacientemente os cordões que prendiam fortemente sua capa maravilhosa, usando com habilidade as mãozinhas, carrancudo e de olhos brilhantes de curiosidade... se o pudessem ver naquele momento, talvez mudassem de opinião (CRAIK, 1967, p.55).

Dessa forma, a escritora busca enternecer o leitor quanto às dificuldades encontradas por aqueles que fogem à regra iníqua de “perfeição”, recebendo o rótulo e a condição de párias, ou seja, aqueles que ficam no entre-lugar, pois, na grande maioria das vezes, não são aceitos verdadeiramente.

No caso do príncipe, que esteve privado das descobertas da infância, uma vez liberto, se entrega aos instantes poéticos que só são proporcionados nas incipientes miradas:

Não passava de uma campina como tantas campinas de qualquer país, que as crianças estão cansadas de ver. Não tinha nada de especial, nada de grandioso ou espetacular. Era apenas uma campina verdejante, nada mais. Mas para o Príncipe Dolor, que só conhecia a torre solitária e a planície deserta, pareceu um maravilhoso panorama. [...] Até aquela idade (que ele não sabia qual fosse, por não fazer a menor ideia do dia de seu aniversário), Dolor nunca tinha visto árvores! Os galhos e folhas dos velhos e imponentes carvalhos pareciam ao menino, enquanto ele sobrevoou, uma das visões mais impressionantes que já lhe fora dado contemplar (CRAIK, 1967, p.67-68).

Também é evidenciado no enredo que as pessoas especiais são capazes de desenvolver diversas habilidades, bem como a independência:

Foi uma existência bem estranha a do Príncipe Dolor, naqueles cinco dias de solidão. Ele jamais os esqueceu, pois além de lhe despertarem grande capacidade de iniciativa, ensinaram-no a se valer do próprio esforço para realizar seus objetivos, qualidades indispensáveis ao êxito pessoal em qualquer ramo da atividade humana (CRAIK, 1967, p.96).

Depois, com a ajuda de dois elementos que não podiam faltar num conto de fadas, isto é, uma madrinha e um objeto fantástico, neste caso uma capa que lhe dava a capacidade de voar, retorna ao seu reino, recupera sua coroa, ganha a confiança e o respeito de seu povo, e, assim, mostra que sua disfunção física não o impediu de realizar seus objetivos.

A narrativa segue muitos detalhes dos roteiros dos clássicos contos da época de sua escritura, mas se torna genuína devido alguns fatores, como, por exemplo, ter como protagonista um menino com deficiência, mostrar que as famílias reais não são perfeitas, e, também, não oferece o esperado “final feliz”:

Não vou dizer que Dolor tenha sido sempre feliz – quem é? – ou que não tivesse, como todos nós, seus aborrecimentos. Sempre, porém, que se sentia aborrecido com o excesso de cansativas cerimônias, complicados julgamentos, longas reuniões com o Conselho e outras obrigações decorrentes da sua condição de rei, refugiava-se no quarto lá em cima, que tinha vista com os montes Belos, deitava a cabeça no ombro da madrinha e lá ficava até se sentir novamente calmo e descansado (CRAIK, 1967, p.106).

Analisando o contexto da obra e a comparando com a conjuntura atual, percebemos que, desafortunadamente, alguns conceitos maléficos se mantém ao longo dos séculos, pois é perceptível, assim como ocorrera com o príncipe, a segregação dos deficientes físicos e mentais, reforçada por políticas que somente favorecem aos já afortunados, deixando nas “torres” do esquecimento todos os que estão distantes da órbita do poder e dos padrões estabelecidos como adequados.

(CRAIK, Mulock. O Pequeno Príncipe Aleijadinho. Trad. Maria Clara Machado. Rio de Janeiro: EDIOURO, 1967).

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