quinta-feira, 28

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março

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2024

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O Nascimento de Luiza

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Aos poucos às curvas de seu corpo outra curva aparecia

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Potira Tainá era a filha mais nova de Avati e Indaíra. A única menina depois de seis rapazes. A princesa da oca, da taba e da tribo. Tratada sempre com todos os mimos com os quais os índios sempre criaram suas filhas.

Ela nunca se encantara com nenhum dos jovens de sua tribo e nem de tribos vizinhas. Indígenas de longínquas terras encantados pelas lendas ouvidas acerca da beleza de uma miragem que vivia nas terras do sul vinham até a taba do cacique Avati com a intenção de conquistá-la. Potira Tainá mantinha-se na sua pétrea postura. Tratava a todos com a mesma peculiar gentileza inerente aos nativos habitantes.

Não resistiu, no entanto, ao magnetismo emanado do olhar e do sorriso de Jorge. Parecia-lhe ser o próprio Tupã encarnado em um homem branco.

Aos poucos às curvas de seu corpo outra curva aparecia. A cada dia percebia que o volume em seu ventre aumentava. Nada, no entanto, a impedia de continuar com suas alucinantes cavalgadas. Banhar-se nas águas da cachoeira trazia-lhe paz, conforto e luz para seu tumultuado espírito.  

Sempre dormira bem. Nos tempos em que vivia em sua oca, era só deitar-se na esteira ao escurecer que seus sentidos se apagavam. Ali, na espaçosa e macia cama, dormia nos braços de Jorge sem perceber que a terra continuava sua rota em torno do sol.

Mas naquela noite estava já com os olhos ardentes de tanto fitar sombras em meio à escuridão. Sabia que a madrugada chegaria em breve. Coisas atávicas em sua mente. Percebeu um movimento estranho em seu ventre. Não era a cria que lá dentro se movimentava como estava a sentir já há algumas luas. Era algo diferente. Parecia que seu ventre crescia como se uma montanha aparecesse repentinamente dentro dela. E logo em seguida voltava ao normal. De início estas sensações apareciam com longos intervalos. Com o correr das horas, de forma mais amiúde. Quando percebeu uma força estranha a puxar suas entranhas para fora, um líquido viscoso começou a escorrer em meio às suas coxas. Como se fora uma serpente esgueirou-se para fora do leito e assim, silenciosamente, foi até os fundos da casa. Imaginava chegar ao estábulo, montar em seu negro corcel e sair pelos campos até que tudo se consumasse.

Não houve tempo. Na varanda foi obrigada a sentar-se em um banco. E assim seu bebê veio ao mundo. Sentiu que a mãe do corpo ainda se mexia e logo a companheira* saltava para fora em meio a um borbulhar de líquidos avermelhados. Deu um nó no cordão que unia a criança àquela massa avermelhada que o acompanhava e envolveu suas partes pudendas com uns trapos que encontrou por ali. Com um assovio chamou seu fiel cavalo preto e sobre seu lombo saiu em disparada em direção à cachoeira. O sol começava a mostrar seus primeiros clarões quando lá chegou.

Atirou-se nas águas límpidas do regato que de imediato se tisnaram com os tons rubros do sangue que de seu ventre vertia e com os tons esbranquiçados do leite que de seu seio escorria. Passou horas ali a dançar sobre as águas e com as águas como se fora um ritual mágico de purificação. A noite chegou e ela não retornou para junto de Jorge. Cobriu-se com a luz das estrelas e sorveu o sereno das folhas para saciar sua sede.

Na manhã seguinte mastigou algumas ervas que juntou perto da margem. Aliviava as contrações de seu estômago vazio e davam-lhe ânimo. Juntou as longas hastes de um capim que abundava por ali e teceu um arremedo de tanga para cobrir seu ventre e seus seios. Assoviou para seu corcel que pastava ao longe e fê-lo entrar no riacho. Lavou seu lombo onde os sanguinolentos líquidos da véspera já haviam secado. Lavou os trapos que usara como forro, deixou-os a secar ao sol e colocou-os sobre o dorso do velho companheiro de tantas andanças. Sussurrou em seus ouvidos:

— Vamos para a casa de meus pais, Raio de Luar. 

E como uma flecha ao vento em poucas horas apeava defronte à oca dos seus. De longe ouvira canções tristes entoadas por todos os membros da tribo. Uma dor lancinante cortou seu coração. Imaginou que eram cânticos fúnebres em homenagem a seu avô ou a seus pais que tivessem partido para a campinas eternas. Logo que saltou do cavalo cessaram os sons melancólicos.

— Minha filha, minha filha, você está viva! —Gritavam felizes e a chorar Indaíra e Avari. — Ontem, mal o sol havia raiado Jorge esteve aqui com seu capataz. Estava desesperado. Contou-nos tudo.

Quando Jorge acordou, muito cedo, naquela manhã, estendeu os braços para acariciar o corpo de sua amada, como desde sempre fazia. Encontrou apenas um espaço vazio a seu lado. Assim como dormira, de cabelos desgrenhados ainda, correu para fora para saber por onde ela andaria. Mal abriu a porta encontra dona Maria das Dores, a governanta que vinha a seu encontro tendo em seus braços um embrulho que chorava. Ela estava indo em direção à cozinha, naquela manhã, como era seu hábito, a fim de avivar o fogo e começar a preparar a primeira refeição matinal. quando viu aquele rastro de sangue pela casa. Um rastro que ia até a varanda dos fundos. Logo ouviu um choro de criança, mais vagido que choro e viu aquele serzinho envolto em uma poça de sangue. Chamou as demais servas. Com uma tesoura que flambara em álcool cortou o cordão umbilical, amarrou-o com um cordão que encontrou em sua máquina de costura. Banharam-no em água morna. Reavivaram-no com massagens. Envolveram-no em cobertores macios. Ana, uma jovem serva que perdera um filho de meses há poucos dias ofereceu o seio que o bebê sorveu avidamente.

Logo todos os empregados e agregados da propriedade acorreram ao casarão para conhecer a recém-nascida, uma linda menina de pele amorenada, cabelos muito pretos e levemente encaracolados e olhos de cor indefinida. Conforme a luz a incidir sobre eles tinha uma tonalidade castanho clara que de repente se tornava levemente esverdeada.

Potira Tainá, com a cabeça no colo de sua mãe, ouviu toda a história. Estava ainda meio tonta, cansada, com a mente confusa. Além dos efeitos do parto, as suas correrias pelos prados há dois dias já que não se alimentara. Perdera muito sangue, mas não sabia avaliar se era normal. Nunca assistira a um parto em sua aldeia.

Logo chegaram as anciãs com seus conselhos, o Pajé com suas ervas e seus gestos ancestrais na tentativa de acomodar sua mente. Fizeram um leito macio para que ela repousasse. Cataram ervas na mata e sobre elas uma esteira feita de macia embira. Por muitos dias ela ali permaneceu acomodada. Ministravam-lhe chás feitos de uma mistura de folhas medicinais para que suas cores voltassem ao normal.

Avati enviou mensageiros a Jorge para avisá-lo que tudo estava bem com ela e que na aldeia ela permaneceria por algum tempo até se recuperar.

Jorge entendeu que o melhor para ela seria ficar junto aos seus. Só não conseguia entender o que se passava na mente de Potira Tainá em não aceitar a maternidade, algo tão inerente a todas as mães. Via o afeto com que as mulheres criavam seus filhos. Presenciava a fúria com que até os pequenos animais de pelos ou penas defendiam suas crias.

A menininha de cabelos negros e olhos cor de límpido e claro mel foi acariciada e protegida por um séquito de mãos. Sorria, feliz, quando a colocavam na grande bacia de água morna com ervas perfumadas. Sorria quando Ana lhe oferecia o seio para amamentá-la. Sorria quando Maria das Dores acumulava-a de macias roupinhas e beijava suas róseas bochechas.

Para a festa do batizado Jorge mandou matar dois bois. Convidara todos os amigos da cidade da Lapa e arredores. O padre Aurélio realizou a cerimônia no casarão do sítio. Maria das Dores, a governanta e Nicolau, o capataz foram os padrinhos da graciosa menina que na pia batismal recebeu o nome de Luiza dos Santos. Nascera no dia de Todos os Santos. Avati e Indaíra, comovidos, assistiram todo o cerimonial e participaram do grande almoço servido no campo. Não gostaram muito daquela carne temperada à moda dos brancos.

*Placenta

Continua…

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