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O horror de um corpo em chamas

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Em certa manhã, ao entrar na enfermaria para examinar as pacientes, um soco em meu coração

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O branco do gelo a cobrir o verde da grama nas praças e quintais transporta o pensamento para longas distâncias no tempo e no espaço.

Quando era estudante de medicina nossas aulas práticas, ao lado do leito dos pacientes, tinham início somente no primeiro semestre do quarto ano.

Entrávamos em um novo e desconhecido mundo. Algo diferente em nossas vidas. Um estremecimento em meio à sensação de escalar-se mais um lance de escadas. Algo igual ou talvez até maior que a alegria de ver nossos nomes na lista de aprovados de um exame vestibular realizado quatro anos antes.

Apreensivos circulávamos pelas enfermarias. Olhos atentos nos gestos e na fala dos mestres.

Examinar um paciente estirado em um daqueles leitos era o sonho de nossa vida. Mas sem coragem de sequer perguntar a eles o seu nome. Porque, antes de tudo, era preciso saber sua história e conhecer os motivos de seu internamento. Tartamudeávamos. Alguns crônicos — que há semanas já lá se encontravam— ajudavam-nos contando tudo o que para muitos já haviam contado.

E o professor, ao lado, a empurrar-nos para o exame clínico. Auscultar o coração e os pulmões. Verificar os níveis da pressão arterial. Palpar o abdômen. Auscultar o murmurio vesicular e decifrar seus diferentes sons.

Lá pelo segundo semestre, mais confiante em meus meticulosos afazeres na enfermaria de mulheres, dou início à rotina de sempre. Rotina em abraçar os prontuários dos pacientes. Nenhuma rotina com o rodízio de doentes pelos leitos.

Não me dei conta do nome que encimava um daqueles documentos em minhas mãos.

Ela se encontrava separada dos demais por um biombo. O assoalho abriu-se a meus pés ao ouvi-la.

— Adair, é você — um balbuciado som vindo do outro lado.

Reconheceu-me pela voz, disse-me.

Sim, pelo corredor da enfermaria vinha eu ao lado do professor e de mais duas colegas a discutir o caso da última paciente que acabávamos de examinar.

Não a reconheci de imediato. Envolta em compressas de gaze embebidas em soro fisiológico e pomadas. Era uma chaga só.

 Casara-se com um russo, fugitivo da antiga URSS. Com outros companheiros conseguira vir para o nosso país. Eram compadres de meus pais.

Numa infeliz tarde resolveu deixar o assoalho de sua casa mais brilhante. Ceras comerciais jamais fariam de seu chão um espelho como ela queria. E seguiu, meticulosamente, a famosa receita das comadres. Comprou pedaços da mais pura cera. Em uma lata, sobre o fogão de lenha derreteu-a com o fatídico acréscimo de gasolina.

Suas vestes, toalhas e cortinas da cozinha transformaram-se em negra e espessa fuligem.

Vizinhos acorreram. Chamaram os bombeiros. Que a levaram para a Santa Casa. Que a salvaram e à sua casa.

Algo milagroso aconteceu. Ela não teve mais de 40% do corpo queimado. Foi uma lenta e dolorosa recuperação. Sobreviveu. Com muitas cicatrizes, mas sobreviveu.

Eu já formada e fazendo residência na cidade de Santos, São Paulo, em outra Santa Casa de Misericórdia. Naquela fundada por Braz Cubas lá pela primeira metade do século XVI. A chamada Santa Casa da Misericórdia de Deus e dos Homens, Porta Aberta para o Mar”, segundo uma placa que lá se encontra.

Em certa manhã, ao entrar na enfermaria para examinar as pacientes, um soco em meu coração. Lá se encontrava a nossa velha amiga. Envolta, uma vez mais, em compressas de gaze umedecidas em soro fisiológico.

Reconheci-a após ver seu nome no prontuário aos pés da cama. Desta vez as queimaduras estendiam-se quase que pelo corpo todo.

Novamente a mesma fatídica fórmula para deixar um assoalho com o brilho do sol.

Não sobreviveu.

Assim como ela inúmeras pessoas por nossas mãos passaram. De todas as idades. Brincando com o fogo. Trabalhando com esta trágica mistura de cera com gasolina sobre a quente chapa de um fogão a lenha.

A chegada do frio traz trágicas lembranças. Pessoas enregeladas a aquecerem-se na frente de uma fogueira ao rés do chão. Ou na triste ilusão de acender um litro de álcool em um recipiente qualquer para tornar a noite menos gélida.

Quantos pequenos queimados passaram por nossas mãos nas enfermarias pediátricas. Fomos partícipes na realização de extensos curativos. Auxiliamos em outras tantas cirurgias plásticas restauradoras. Em todos os casos uma triste história a acompanhar estas pessoas.

Uma extensa queimadura sempre será algo trágico a chegar às portas das unidades de pronto atendimento médico.

Nunca se sabe a extensão da romaria que tanto o paciente queimado terá que fazer, como toda a sua família também.

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