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abril

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O fascínio de Pietra*

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Não tinha ideia quem seria o jovem que se jogara em uma aventura tão drástica para lhe levar flores e uma carta

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Ao ver Pietra deslizar suavemente sua beleza, na ponta dos pés, através do escritório do palácio, Luca foi tomado por um imenso deslumbramento. Elaborou peripécias mil tentando entregar-lhe, pessoalmente, um enorme buquê de frescas flores colhidas em seu jardim, ainda cobertas com o orvalho matinal. Passara noites a escrever-lhe apaixonados versos de amor. Depois do inevitável acidente quando foi jogado com escada e tudo nas águas do canal que margeava as paredes da grande construção onde viviam os Dupré, a desolação dele tomou conta. Ao ver o grande arranjo floral a espalhar-se a seu lado imaginara que o grosso envelope que, num último esforço atirara em direção à janela talvez não tivesse alcançado os braços de sua amada.

O coração de Pietra palpitava. Não tinha ideia quem seria o jovem que se jogara em uma aventura tão drástica para lhe levar flores e uma carta. Tinha uma leve impressão de já tê-lo visto. Só não localizava em sua memória nem o onde e nem o quando.

Nunca em sua vida imaginara que alguém fosse capaz de se arriscar a uma igual aventura. Encontrava-se, a sós, em uma das salas laterais do palácio. Escondeu o grosso envelope debaixo de suas saias e correu para os seus aposentos. Tremiam-lhe as mãos ao cortar, com uma tesourinha, o papel que, imaginava ela, envolveria um tesouro.

De dentro do invólucro várias páginas cobertas de poemas. Ria, nervosamente, enquanto lia versos em latim misturados ao vêneto.

Ele é um poeta! Pensou. E sorriu, feliz. As mais belas palavras naquelas pautas encontravam-se grafadas. Falava-lhe das flores que cultivava em seu jardim. Das noites insones após tê-la visto a passar flanando pelo escritório de seu pai, naquela inefável tarde. Falava-lhe dos sonhos que por sua mente passaram a dominar. De com ela correr, em sua humilde e pequena gôndola, pelos canais de Veneza. Queria mostrar-lhe a beleza de todas aquelas ilhas maiores que ficam ao largo, no mar. Suplicava-lhe o perdão pela ousadia.

Dizia tudo isto em palavras tão sutis, tão meigas, tão cristalinas, tão poéticas que ela já se imaginava ao lado dele, a mais querer saber sobre os magníficos poetas italianos. E ela lhe falaria dos versos de Voltaire, Manon Lescaut, Andréa Chenier, Rabelais e outros mais que seu bisavô deixara na velha biblioteca do palácio.

E agora? Como faria para vê-lo e com ele conversar? Não poderia mais permanecer na biblioteca de seu pai, ao lado do escritório, enquanto ele estivesse tratando de negócios.

Luca, por seu lado, andava aflito. Não tinha certeza se a carta que, com tanto empenho, fizera chegar tão perto de sua amada teria sido apreendida por ela. Ou teria sido perdida nas águas para sempre?

Foram tantas as suas incursões em torno do vetusto palácio onde sua amada morava que um dia percebeu que de dentro dele saía, pela porta destinada aos servos, uma senhora conhecida dele. Abordou-a, com a maior das gentilezas, curvando-se à sua frente e até beijando-lhe as mãos. Marieta era o seu nome. Morava um pouco além da propriedade dos Tascogna.

— Senhora Marieta! Perdão por interromper o seu passeio. — Fez de conta não ter visto que ela acabava de deixar o palácio — Eu preciso muito de um favor seu. Talvez a senhora não se recorde de mim. Eu sou filho do senhor Lorenzo, moro lá pelos lados onde a senhora mora.

— Como cresceu este menino! Claro que me lembro. Mas o que uma velha senhora pode fazer por você?

— Vamos andando, senhora, que no caminho irei lhe contando.

Contou então suas desventuras de amor. Sabia que ela trabalhava no palácio dos Dupré. Que precisava que ela entregasse uma carta para a senhorinha. Ele nem sabia o nome de sua amada.

— Ah! Uma carta de amor para a senhorinha Pietra? Amanhã cedinho retorno para os meus afazeres no palácio. Entre eles está o de arrumar o quarto da donzela. Mas nada prometo. Vou pensar esta noite. Porque não posso prescindir deste emprego. Com esta guerra perdemos tudo. Meu marido ficou sem uma das pernas. Anda de muletas. E temos seis bocas em casa para dar de comer. Encontre-me aqui, amanhã, no raiar do dia. Se eu achar que dará certo, levarei a carta. Vou pedir uma iluminação para Santo Antônio, o santo de Pádua.

Luca não conseguiu fechar os olhos. Passou um pedaço da noite escrevendo poemas para Pietra e outro pedaço vendo as horas a correr para encontrar a velha conhecida de sua família.

Não aguardou o raiar do dia. As luzes dos lampiões das ruas levaram-no para a entrada da vivenda de Dona Marieta. Ainda bem que naquele desastroso dia conseguira recuperar sua pequena gôndola. Nela ele a levaria até perto do palácio dos Dupré. Apreensivo, envolto em sua capa, aguardava.

Nem conseguia acreditar que ela concordara com a missão proposta.

— Ao anoitecer espere-me no mesmo local de ontem. Se tudo der certo e se houver uma resposta já poderei lhe entregar.

Pietra não sabia se ria ou se chorava quando a serva lhe entregou o calhamaço de papéis carregados de poemas. Neles Luca lhe explicava onde a tinha visto pela primeira vez e depois disto quantas mais passando, em sua pequena gôndola, vendo-a nas janelas do palácio. Foi então que se lembrou de haver passado, quase como um raio, por aquele rapaz de olhos brilhantes, fixos nela, na tarde em que voara para longe do pai e das visitas no escritório, ao lado da biblioteca.

Avidamente sentou-se em uma almofada e enquanto Marieta fazia a ordem em seus aposentos, ficou a ler aquelas páginas cheias de poemas de amor. Apaixonava-se a cada página mais por um desconhecido cavalheiro veneziano.

Pegou uns vestidos guardados, que estavam impecáveis, pedindo para a senhora Marieta que os levasse para lavar e passar e que antes de ir embora, ao entardecer, trouxesse-os limpos e em ordem porque ela escolheria um deles para o jantar daquela noite.

Marieta fez de conta não haver percebido o álibi. Tomou a trouxa de roupas em suas mãos e saiu sorrindo pelos corredores.

Pietra mandou também um recado para as preceptoras. Que estava indisposta e que passaria o dia em seus aposentos. Não sairia nem para participar do sagrado horário do almoço com a família.

Passou o dia a ler e a reler as duas cartas-poema de Luca. E a escrever tudo o que lhe passava na alma. Algum dia poderiam se encontrar. Algum dia poderiam conversar. Ah! Os sonhos que por sua mente perpassavam.

Luca recebeu, feliz, um pacote de papéis escritos com uma desenhada, linda e miudinha caligrafia. Papéis que beijou com sofreguidão ali mesmo na viela quase escura. Levou, uma vez mais, a senhora amiga para casa em sua pequena gôndola. E colocou em suas mãos as únicas moedas de prata que guardava em sua curta vida. Porque o tesouro maior ela colocara em suas mãos.

Dona Marieta estava feliz, mas apreensiva. Feliz em ver a reluzente face de seu vizinho. Feliz com as moedas de prata em suas mãos. Apreensiva com o seu futuro se seus patrões descobrissem que estava se prestando a intermediar um romance às escondidas. Mas aquelas moedas lhe fariam tão bem. Nichola, seu marido, precisava de novas muletas. As que usava já tinham sido de segunda ou sabe-se lá, de quantas mãos. Encontrava-se carcomida. Poderia partir-se a qualquer hora. Envergonhada, agradeceu a gratificação.

Grazie, meu jovem. Apenas aceito esta sua oferta porque estou muito necessitada. Mas por favor, não me peça mais para levar suas cartas para a senhorinha. Tenho medo que os meus patrões descubram… Não posso perder este emprego. Onde encontraria outro, sabendo de antemão que a traição feita a meus atuais patrões se espalharia por toda a Veneza?

Grazie, senhora Marieta! Perdoe-me por haver solicitado à senhora que me ajudasse. Não a incomodarei mais. Apenas diga à senhorinha Pietra que fiquei muito feliz em saber que ela não recusou minhas cartas. E que recebi as que ela, por seu intermédio, colocou em meu coração.

Emocionado beijou as mãos de dona Marieta. E sorrindo seguiu o caminho de sua casa. Deteve-se, por algum tempo, a conversar com os seus. A ouvir as orientações de seu pai sobre os serviços do dia seguinte. Mal comeu a massa que sua mama preparara para o jantar. Tomou meia taça de vinho. Disfarçou. Falou que não se sentia bem e em seu leito instalou-se, para, à luz de velas ler, ansioso, as linhas que sua amada escrevera.

*Outro trecho de um livro em construção


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