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O escândalo do século

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A literatura imita o jornalismo

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Assim como qualquer pessoa (assim espero) que leia Gabriel García Márquez, me deslumbrei já nas primeiras páginas de seu livro “Del amor y otros demonios”, e, logo, me embrenhei em toda sua produção literária. Suas narrativas, que são ambientadas na fascinante atmosfera colombiana, imbricam realismo e magia para compor enredos insólitos e contestatórios, e levam o leitor ao patamar supremo que só as grandes obras são capazes, nos despindo do pragmatismo e, entrementes, nos impulsionando para a revolução ideológica.

Mesmo sendo consciente de sua qualidade literária, eu ainda desconhecia seu viés jornalístico, até me deparar, em uma viagem e visita a uma livraria, com a antologia “O escândalo do século”, que abarca cinquenta textos publicados entre 1950 e 1984.  Na nota do editor, a seguinte frase me levou à reflexão: “Gabriel García Márquez encarregou-me de repetir que o jornalismo é “o melhor ofício do mundo” e que se considerava mais jornalista que escritor: “Sou jornalista, fundamentalmente. Toda a vida fui jornalista. Meus livros são livros de jornalistas, embora se perceba pouco”. Pensei imediatamente: como assim? Um dos maiores escritores literários da História se considera primeiramente jornalista? Ele prefere a realidade à ficção?

No entanto, ao longo da leitura, o autor, mais uma vez, praticou o que considero sua maior qualidade: me surpreendeu e me fez repensar em todos os meus conceitos literários, históricos, filosóficos e conjunturais. Então entendi o motivo de ele desejar ser lembrado como jornalista, antes de aclamado como literato. A saber, toda a bagagem factual que motiva suas narrativas foram coletadas durante seu ofício jornalístico em um mundo tão surreal quanto os representados em “Cien años de soledad”, “El amor en los tiempos del cólera”, “El otoño del patriarca”, e assim por diante. Sobre esse último, por exemplo, relata que:

Durante quase dez anos li tudo o que pude sobre os ditadores da América Latina, e em especial do Caribe, para que o livro que pensava escrever se parecesse o menos possível com a realidade. Cada momento era uma desilusão. A intuição de Juan Vicente Gómez era mais penetrante do que uma verdadeira faculdade divinatória. O doutor Duvalier, no Haiti, mandou exterminar os cães pretos no país, porque um de seus inimigos, tentando escapar da perseguição do tirano, despira-se de sua condição humana e se transformara em cão preto. O doutor Francia, cujo prestígio de filósofo era tão extenso que mereceu um estudo de Carlyle, fechou a República do Paraguai como se fosse uma casa, e só deixou aberta uma janela para que entrasse a correspondência. Antonio López de Santa Anna enterrou a própria perna em funeral esplêndido. A mão cortada de Lope de Aguirre flutuou rio abaixo durante vários dias, e os que a viam passar estremeciam de horror, pensando que mesmo naquele estado a mão assassina podia erguer um punhal. Anastasio Somoza García, na Nicarágua, tinha no pátio de sua casa um jardim zoológico com jaulas de dois compartimentos: num deles estavam as feras e no outro, separado apenas por uma grade de ferro, encerrados seus inimigos políticos. Martínez, o ditador teosofista de El Salvador, mandou forrar com papel vermelho toda a iluminação pública do país, para combater uma epidemia de sarampo, e inventara um pêndulo que colocava sobre os alimentos antes de comer, para verificar se estavam envenenados (MÁRQUEZ, 2020, p.278).

Os impensáveis requintes de crueldade estarreceram ao escritor e, diante desta riquíssima diversidade, em que a natureza, os fatos históricos e os habitantes são surreais, ele é capaz de amalgamá-los e ser o mestre do Realismo Mágico:

Essa realidade incrível alcança sua densidade máxima no Caribe, que, a rigor, estende-se (pelo norte) até o sul dos Estados Unidos, e, pelo sul, até o Brasil. Não se imagine que é um delírio expansionista. [...] No Caribe, os elementos originais das crenças primárias e concepções mágicas anteriores ao descobrimento, somou-se à abundante variedade de culturas que confluíram nos anos seguintes num sincretismo mágico cujo interesse artístico e cuja própria fecundidade artística são inesgotáveis. A contribuição africana foi forçada e ultrajante, mas afortunada. Nessa encruzilhada do mundo, forjou-se um sentido de liberdade incomparável, uma realidade sem lei nem rei, onde cada um sentiu que era possível o que quisesse sem limites de qualquer espécie: e os bandoleiros amanheciam convertidos em reis, os fugitivos em almirantes, as prostitutas em governadoras. E também o contrário (MÁRQUEZ, 2020, p.277).

Ou seja, mostra que a verdade factual que pesquisa e registra em seus escritos jornalísticos é quase que paralela às narrativas fictícias, como podemos comprovar no seguinte excerto: “Nasci e cresci no Caribe. Conheço-o país a país, ilha a ilha, e talvez daí provenha minha frustração de que nunca me aconteceu nada nem pude fazer algo que seja mais assombroso do que a realidade. O mais longe a que pude chegar foi a transposição com recursos poéticos, mas não há uma só linha em nenhum de meus livros que não tenha sua origem num fato real. Uma dessas transposições é o estigma do rabo de porco que tanto inquietava a estirpe dos Buendía em Cem anos de solidão” (MÁRQUEZ, 2020, p.276). E segue narrando que, após a publicação da obra, recebeu confissões de pessoas, oriundas dos mais diversos lugares, afirmando terem algo semelhante a um rabo de porco.

Assim, mais uma vez foi nocauteado pela realidade e impulsionado a trespassa-la. Isso me ajudou a compreender o que me intrigava desde o primeiro contato com as obras de Gabriel García Márquez, isto é, sua exímia capacidade criativa, a qual é motivada por uma realidade que, por si só, combina ingredientes mágicos. É preciso ser, assim como ele, muito sensível, atento e talentoso para driblá-la e elaborar enredos instigantes.

Além disso, em outros textos que compõem a antologia, evidencia a desvalorização da profissão de escritor e seu árduo trabalho, pois “Não creio que sejam muitos os leitores que ao terminar a leitura de um livro se perguntem quantas horas de angústias e de infortúnios domésticos custaram ao autor” (MÁRQUEZ, 2020, p.191). Não obstante esse fator, nós, escritores caribenhos natos e entusiastas desse mundo surreal, temos a nosso dispor a matéria-prima de uma realidade tão literária quanto a mais inefável das narrativas! Dessa forma, assimilamos que o jornalismo contribui enormemente para as produções literárias.

(MÁRQUEZ, Gabriel García. O escândalo do século. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2020).


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