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março

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2024

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O Deus das pequenas coisas

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O fluxo da consciência

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Quando iniciei meus estudos literários acadêmicos, senti certo desconforto ao ler as narrativas experimentais, as quais ousam na escolha vocabular e dão voz autônoma ao fluxo da consciência. Na medida em que somos educados na tradição das narrativas lineares, ou seja, aquelas que obedecem à ordem pré-estabelecida: começo, meio e fim, é muito difícil apreciar enredos que são, a princípio, desconexos.

No entanto, quando amadurecemos nas leituras, além de perceber a grande quantidade de escritores que se dedicam a escrever nesse estilo, nos damos conta de que eles seguem a dinâmica real da vida.

Irreais são, por exemplo, algumas narrativas clássicas do período Realista, uma vez que os fatos do cotidiano não ocorrem de forma padronizada. Ao contrário, se imbricam, retrocedem, antecedem, retornam, exatamente como afirma, em “Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa, grande ícone do experimentalismo: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

O fluxo da consciência sendo, por natureza, ininterrupto, não segue uma temporalidade determinada. As lembranças, ora se retraem, oram vêm à luz. Algo que estava aparentemente esquecido, pode retornar e se mesclar às novas memórias, formando outras centelhas significativas.

E é isso que Arundhati Roy, em sua obra “O Deus das pequenas coisas”, retrata, isto é, as determinações mnemônicas e como elas modificam as inferências do outrora, do agora e do porvenir. Além de elencar os subterfúgios que usamos na tentativa de domar as remembranças, como se tivéssemos liberdade para preservá-las ou proscrevê-las:

Naquelas últimas noites torturadas, antes de deixá-la, Chacko saía da cama com uma lanterna e ia olhar a filha adormecida. Para aprendê-la. Para gravá-la na memória. Para garantir que quando pensasse nela, a criança que evocasse fosse exata. Memorizou a penugem castanha da cabecinha mole. A forma da boca sempre em movimento, formando um biquinho. Os espaços entre os dedos dos pés. A sugestão de uma pinta. E então, sem querer, viu-se procurando na filha traços de Joe. O bebê agarrava seu polegar enquanto ele conduzia aquela pesquisa maluca, fragmentada, invejosa, à luz da lanterna (ROY, 1997, p.124).

No relato da convivência quase que siamesa entre irmãos gêmeos, os objetos carregam remembranças, e a casa da família é uma metáfora da Índia paradoxal, isto é, na tentativa de modernização e, ao mesmo tempo, de perpetuação de preconceitos. O mosaico familiar, que é composto por pessoas com disfunções relacionais, vai sendo desvelado aos poucos. Além disso, a narrativa evidencia o lirismo e a liberdade poética, na qual verbos são substantivados e adjetivos são amalgamados para formar neologismos. Cada vocábulo tem uma carga histórica significativa e a sensibilidade para enxergar a beleza dos eventos mais efêmeros parece se converter no mote do livro, como vemos nesse excerto: “Na entrada de Ayemenem atropelaram uma borboleta verde-repolho, ou talvez ela é que tenha atropelado o carro” (ROY, 1997, p.160).

Um dos traços mais marcantes do enredo é nos alertar de que, muitas vezes, estamos inseridos numa conjuntura que torna inimigos aqueles que não necessitariam pertencer a instâncias opostas. Na sociedade indiana, marcadamente segregadora, muitos cidadãos são arrastados pelas convenções, como é perceptível em:

Os gêmeos eram jovens demais para saber que aqueles eram apenas lacaios da História. Mandados para acertar as contas e cobrar as taxas daqueles que desrespeitavam as leis. Impelidos por sentimentos que eram primais, mas, paradoxalmente, inteiramente impessoais. Sentimentos de desprezo nascidos de um medo incipiente, inidentificável: o medo que a civilização tem da natureza, o medo que os homens têm das mulheres, o medo que o poder tem da impotência. O medo subliminar do homem de destruir aquilo que não pode nem dominar, nem deificar (ROY, 1997, p.307).

A leitura de “O Deus das pequenas coisas”, além de provocar um mosaico de emoções, pois ora é densa, ora cativante, ora enternecedora, ora reflexiva, nos propõe a pensar sobre o sistema de castas que, embora arcaico, ainda permanece causando danos na sociedade indiana. Ou seja, é tão absurdo que nos confrontamos com a indagação ainda irrespondível: quando foi que se estabeleceu quem pode ser amado e quando isso pode ocorrer? Esse questionamento motivou a escritora a compor a obra e, indubitavelmente, impulsionará o leitor a lê-la e, também, a buscar uma resposta.

(ROY, Arundhati. O Deus das pequenas coisas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997).

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