quinta-feira, 18

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abril

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2024

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O desespero de Marcelino

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Desde que deixara a Itália pela última vez tudo parecia desmoronar a passos rápidos

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Marcelino acordou sobressaltado. Encontrava-se deitado sobre um leito dentro de uma grande sala. Outros leitos iguais de lado a lado. Um cheiro de algo que lhe lembrava creolina. Calor intenso. A luz do sol a penetrar por enormes janelões. Gemidos e gritos de dor.

— Onde estou? O que aconteceu?

Passou a mão por sua cabeça. Estava coberta de ataduras. Sua mão direita também estava machucada. Mas aquelas vestes não eram as suas. Trajava uma espécie de pijama listrado de áspero algodão.

Um vulto surgiu na porta, ao longe. Longas vestes brancas. Um véu cobria sua cabeça e quase todo o seu rosto. O vulto aproximou-se.

— Que bom que acordou, meu filho —uma voz suave em uma língua estranha. Não conseguia entender o que ela dizia. Parecida com a sua, mas não igual.

Estava ainda meio obnubilado. Nada entendia. O que estaria fazendo naquele lugar? Com aquelas roupas? Tentou explicar-se em espanhol, em francês, mas não adiantou.

Logo chegou outra pessoa igual à primeira que lhe dirigiu algumas palavras em italiano. Sorriu. Contou-lhe então ter sido recolhido por um cocheiro que casualmente entrara naquele mesmo estranho beco. Encontrara-o caído ao solo com a cabeça mergulhada em uma poça de sangue já coagulado.

— Há muitas horas o senhor já devia estar lá. Sorte ser uma boa alma que logo tratou de trazê-lo aqui para a Santa Casa de Misericórdia.

— Santa Casa de Misericórdia? Estou num asilo?

— Não, meu filho. Você está em um hospital.

— Hospital? Como? Por que? Preciso ir embora. Preciso pegar meu navio. O Comandante já deve ter chegado às raias da loucura. Preciso retornar com urgência ao meu navio.

— Meu filho, de qual navio você está falando?

— L’Aquilla del Mare. Sou o Imediato deste grande cargueiro, dona…

— Irmã Maria Consolata.

— Pois é, como eu ia dizendo, senhora Irmã Maria Consolata, eu preciso urgentemente de um coche que me leve até o porto.

— Meu filho, você ficou em coma por mais de dez dias. Os médicos não acreditavam que sobrevivesse. Temiam por uma grave lesão em seu cérebro. Enviaremos um ajudante nosso até o porto para saber se seu navio ainda se encontra lá. Você chegou aqui vestido apenas com as roupas de baixo e sem nenhum documento. Não tínhamos como saber quem era e nem de onde vinha.

O rapaz que as freiras enviaram até o cais retornou com a pior notícia que Marcelino poderia ouvir. O L’ Aquilla del Mare partira já há uma semana.

Sem roupa, sem dinheiro, sem documentos… O desespero tomou conta.

— Irmã Maria Consolata! O que farei de minha vida? Tenho um filho pequeno. Minha jovem esposa deve estar desesperada sem notícias minhas. Preciso trabalhar. Preciso passar um telegrama para ela. Preciso que meu pai me envie documentos novos. Preciso de uma roupa.

O desespero foi imenso. Desandou a chorar. De repente passou a mão em sua orelha. Estava também coberta com uma atadura.

— Irmã Maria Consolata! Minha argola de ouro?

— Nada havia em sua orelha a não ser um grande e sangrante ferimento. Agora você precisa se recuperar. Depois pensaremos no resto. Padre Archangello, nosso capelão, esteve aqui por diversas vezes. Até a Extrema-Unção já lhe ministrou.

— Nem sei como agradecer-lhes tudo isto. Mas eu preciso avisar minha família. Meu pai mandará uma ordem pelo Banco da Itália para que eu possa pagar o que fizeram por mim. Mas tenho que fazer alguma coisa.

— Vamos aguardar o médico e ver quando você terá alta. Quanto ao telegrama, poderemos providenciar. É só você escrevê-lo.

— Mas tem que ser em italiano, senão eles não entenderão, não é mesmo?

Mais alguns dias se passaram. Onde encontrar um trabalho? Sem documentos? Não poderia ficar indefinidamente a depender da ajuda das Irmãs da Santa Casa de Misericórdia.

— Que trabalho poderia prestar um homem aqui neste lugar, Irmã? Um homem que desde criança só sabe navegar? Trabalhei por uns dias com meu sogro em sua propriedade rural, na Itália. Posso cuidar da criação, da horta, do jardim. Eu preciso pagar com meu trabalho pelo menos o que estou comendo…

— Está bem, senhor Marcelino. Pelo menos agora já sabemos seu nome, o que faz e de onde veio. Vamos mostrar-lhe a horta e o jardim e outras coisas que precisam ser consertadas. Precisamos fazer reparos em nosso coche, na capela, nos corredores. Se achar que pode pegar em um pincel há muitas paredes por aqui necessitando de uma nova mão de tinta. Quando os médicos lhe derem alta veremos o que conseguirá fazer. Mas só depois de se recuperar.

Os telegramas foram enviados. As Irmãs conseguiram umas vestes para que ele pudesse circular pelas dependências da Santa Casa. Aos poucos suas forças foram voltando. Não recebeu de seu pai a quantia que pedira. Algumas semanas depois uma longa carta explicava alguns pormenores.

Desde que Marcelino deixara a Itália pela última vez tudo parecia desmoronar a passos rápidos. Mas o pior foi a carta que a família Castagna recebera da Companhia de Navegação em que Marcelino trabalhara. Ele fora formalmente banido, sem direito a recurso e o seu soldo ficara retido a fim de cobrir dívidas que contraíra no Rio de Janeiro e que seus patrões foram obrigados a pagar se quisessem que seu navio pudesse levantar âncoras.

Foi longa a carta de seu pai. Junto a da empresa em que ele trabalhara. Documentos em que constavam seu nome e o número de sua identidade na Marinha Mercante Italiana.

Como acontecera tudo isto? Os malfeitores que o assaltaram naquela linda manhã, em uma perdida viela, roubaram tudo o que tinha. Até sua identidade. Usufruíram, em seu nome, do bom e do melhor e as despesas foram cobradas dos patrões de Marcelino. Ele jamais identificaria os meliantes. De nada se lembrava. A última imagem era o seu relógio de ouro em suas mãos. E nada mais.

Algo dentro dele esmoreceu. Sentiu um frêmito. Suas pernas amoleceram. Um gelado suor tomou conta de suas faces. De suas mãos. O banco do jardim estava a um passo. Não conseguiu alcançá-lo. Estatelou-se ao solo. José, seu companheiro de trabalho correu acudi-lo. Chamou uma jovem freira que passava carregando uma trouxa de roupa limpa que acabara de recolher do varal ao lado.

Deram-lhe um copo de água com açúcar. Aos poucos as cores foram voltando. Ele apenas pode balbuciar.

— Thereza, minha amada Thereza, o que será de nós? De nosso Enzo? O que farei? A única coisa que me movia na vida era o mar. E agora estou execrado desta vida. Nenhuma companhia de navegação me aceitará com esta terrível nódoa a manchar minha reputação.

Um pranto convulsivo tomou conta dele. Como um louco começou a andar pelo jardim de um lado para outro até a chegada da noite. O capelão achegou-se a ele para confortá-lo.

— Meu rapaz, há tanta coisa que um homem pode fazer para ter um teto que o cubra e um pão que o alimente. Por ora vamos caminhar, juntos, por estas alamedas. Respire fundo. Amanhã é outro dia. O mesmo sol brilhará. Vamos, Marcelino, você é jovem. Tem uma linda mulher e um risonho garoto à sua espera na Itália. Por eles deve reagir.

Algumas semanas se passaram. Em uma carta a Thereza contara tudo o que acontecera. Não era culpado de nada do que lhe imputavam. Trabalharia, arduamente, a fim de logo poder comprar uma passagem e voltar para casa.

Ao mesmo tempo não sabia que mundo encontraria por lá. As notícias que lia nos jornais não eram nada alvissareiras. Talvez o melhor fosse trazer a família para o Brasil. Precisava pensar.

Fisicamente sentia-se bem. Moralmente, um trapo. Fazia todos os serviços que lhe pediam. Era muito habilidoso. Com carinho cuidava das hortaliças e das flores. Ajudava em toda a parte. Mas sentia-se um intruso. Precisava procurar algo para fazer fora do hospital. Um emprego. Mas onde? O quê? Certa manhã o capelão foi procurá-lo.

— Olá, Marcelino! Você deve saber como conduzir um coche, não é mesmo? O nosso cocheiro adoeceu e não há outra pessoa com habilidade para me conduzir aí pela cidade. Preciso ir ao Palácio Episcopal e eu não tenho mais mãos para segurar as rédeas dos animais.

— Bom, Padre Archangello, posso levá-lo, sim. Mas há muito tempo não lido mais com cavalos. E além do mais eu não conheço esta cidade.

— Não se preocupe, meu filho. O moleque Arnoldo irá na boleia a seu lado e indicará o caminho.

Deram-lhe a vestimenta e o chapéu adequados e, garbosamente, Marcelino desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro. Saiu-se muito bem da incumbência. Outras vezes precisou levar a Madre Maria Albertina, a Superiora, até um convento no outro lado da cidade. O velho cocheiro continuava internado. Seu coração batia desmesuradamente. Devido à intensa falta de ar sua tez tornava-se azulada. Já não conseguia mais trabalhar. Foi internado na Santa Casa.

E Marcelino seguia em frente como o cocheiro oficial da grande e benemérita casa de saúde do Rio de Janeiro.

(Continua)

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