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abril

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2024

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O cocheiro de Dom Pedro 2º

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Para surpresa de Marcelino o monarca começou a falar em italiano com ele

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A família do cocheiro André era muito grande. Começara a passar necessidades pois ele não conseguia mais trabalhar. Seu filho mais velho, Arthur, não se interessava muito em procurar algum serviço. Era muito jovem ainda. Imaginava que quando seu pai deixasse de executar aquele trabalho seria ele o seu sucessor. Ficou muito frustrado por não ter sido indicado.

— Filho, é que você nunca se interessou em aprender o ofício — falou-lhe com suavidade Padre Archangello — O aprendizado não cai do céu. Vá lá, veja bem como o italianinho faz o serviço e peça que ele o ensine. Se você fizer direitinho, o lugar será seu. Mas seu pai ainda está vivo. Em tratamento. O posto ainda é dele.

Desde então o rapazola ficava ao lado de Marcelino. Queria saber tudo. Calma era o que o italiano lhe pedia.

— Roma não se fez num dia, meu amigo. Vou lhe ensinar um pouco de cada vez. Primeiro você tem que ser amigo dos animais. Aprender a cuidar deles. Depois a limpar, até que fiquem brilhantes, todos os veículos usados na Santa Casa. Adquirir a confiança da chefia. Aprender a cavalgar com desenvoltura e depois a guiar as parelhas de cavalos com maestria. E estudar o mapa da cidade. Conhecer todas as ruas. E os locais dos melhores bebedouros, pois os animais sentem muita sede neste calor abrasador.

O garoto entendeu que nada se aprende da noite para o dia. Em pouco tempo já tinha noção do que deveria fazer. O que faltava mesmo era um pouco mais de juízo e atenção. Marcelino acreditou na força de vontade do garoto e que em breve ele estaria pronto para assumir o cargo que fora de seu pai. Só então procuraria outro serviço onde pudesse receber o suficiente para pagar uma passagem de navio e retornar à sua terra.

Certo dia Padre Archangello pediu a Marcelino para conduzi-lo até a Arquidiocese. Fora convidado pelo Arcebispo a fim de participar de uma importante reunião na qual estariam presentes vários prelados. O próprio Imperador Dom Pedro 2º deveria participar pois sua intenção era conversar com o Papa para que logo fosse nomeado um Cardeal que assumisse a direção da Igreja no Brasil.

Quando Marcelino estava limpando e fazendo brilhar a Aranha — nome que se dava aos coches abertos — notou que uma das rodas não se encontrava bem encaixada em seu eixo. Observando melhor notou uma rachadura no aro. Rachadura que já apresentava um avançado grau de ferrugem. Foi até a oficina, que era também o depósito de materiais da instituição, em busca de uma roda sobressalente. Nada encontrou. Havia a da charrete, veículo destinado apenas a corridas mais simples. Tamanho incompatível. Impossível andar pela cidade com aquela avaria. Havia duas opções. Enviar um emissário até o centro para trazer um coche de aluguel. Com o risco de se demorar a encontrar um vago. Ou ver se Padre Archangello aceitaria sentar-se a seu lado na pequena charrete.  O capelão fazia questão de participar daquela reunião que era de extrema importância para a sede da Igreja Católica.

— Sei que você é um hábil condutor. Confio em seu serviço.

Com a ajuda do garoto Arthur Marcelino transformou a humilde e desbotada charrete em um veículo que reluzia ao sol da tarde. Retirou o tosco assento e em seu lugar adaptou o macio e lustroso que removera do velho coche. Garbosos, saíram os dois a rodar pelas ruas do Rio de Janeiro em direção à sede da Arquidiocese.

Enquanto a reunião era realizada no interior do edifício, Marcelino desatrelou o cavalo levando-o para dessedentar-se no bebedouro, em uma rua lateral, deixando a pequena charrete abrigada sob uma frondosa árvore.

As horas corriam e a reunião perpetuava-se. Quando Marcelino percebeu a movimentação na porta de saída correu a atrelar o belo corcel e a seguir dirigiu-se para perto de Padre Archangello a fim de auxiliá-lo no curto caminho até onde a charrete se encontrava. Era intenso o movimento. Não apenas de religiosos mas também de representantes da Corte.

Quando Marcelino oferecia seu braço para que o Padre nele se apoiasse sentiu que alguém, em pé a seu lado, olhava-o fixamente.

Ao levantar a cabeça seu olhar cruzou-se com o próprio Imperador a dirigir-lhe um sorriso de rosto inteiro.

— Quem é este solícito jovem que o acompanha com tanta cortesia, Padre Archangello?

O Padre quase perdeu o chão, tal a sua surpresa.

— Vossa Majestade, —falou colocando o joelho esquerdo ao chão—, este é o senhor Marcelino Castagna, cocheiro da Santa Casa de Misericórdia.

Marcelino repetiu o gesto a fim de cumprimentar o Imperador e permaneceu ereto e mudo ao lado do Capelão. Sua postura e sua atitude impressionaram o monarca.

— De onde conseguiram um cocheiro de porte tão nobre e com estas impecáveis vestes dignas de um príncipe?

— Vossa Majestade, este moço caiu do céu lá na Santa Casa.

— É de um cocheiro assim que estou precisando para meus serviços particulares, Padre Archangello. Avise-me quando outro igual cair do céu lá na Santa Casa.

Riram os dois. O pároco e Marcelino, ainda perfilado a seu lado, aguardaram que o Imperador subisse em sua carruagem. Mas o sorridente Pedro 2º ali continuava.

— Padre Archangello, parece-me que o seu veículo está mais próximo daqui do que o meu. Não consigo ver as pessoas que me trouxeram. Sabe, eu não estou aqui em missão oficial. Vim porque eu preciso saber o que está ocorrendo e os porquês desta demora em conseguirmos um Cardeal. Então bem que vocês poderiam me levar de volta à Quinta da Boa Vista.

Padre Archangello corou. Logo naquele dia em que viera em uma simples charrete.

— Vossa Majestade não irá se sentir bem em nossa humilde e pequena charrete.

— O senhor é um homem magro, meu amigo Padre Archangello, bem como este elegante rapaz aqui. Ficaremos os três muito bem acomodados em seu veículo. E enquanto isto usufruiremos deste belo pôr do sol sobre a Baia de Guanabara e dos morros além. E temos muito a conversar.

De imediato o Imperador tomou o braço direito de Marcelino. O rapaz ajudou a ele e ao sacerdote a se acomodarem no banco e ereto e mudo, como se portara até então, instigou o radioso corcel a tomar o caminho da Quinta da Boa Vista.

Após várias considerações sobre as necessidades básicas que faltavam para as populações carentes, não apenas as das vilas da periferia do Rio de Janeiro como também de outras partes do interior do país, mormente as mais longínquas, o poeta que existia dentro do peito de Dom Pedro II discorreu sobre as belezas da maravilhosa cidade.

— Não é demagogia de minha parte. Algo dentro de mim grita bem alto o que não posso falar na Corte. Se meus antepassados, desde que aqui chegaram, há quase quatrocentos anos, tivessem trazido benesses para o meu país em vez de levarem embora todas as suas riquezas seria tão fácil governar e a cada dia melhorar a vida das pessoas que aqui vivem, aqui estudam e aqui trabalham. Pouco restou. Deixaram dívidas que jamais o nosso tesouro conseguirá saldar.

Padre Archangello apenas meneava a cabeça. Marcelino continuava com sua postura impecável na condução do veículo. Repentinamente, o monarca vira-se para ele.

— O que acha de tudo o que falei, meu rapaz?

Só então Dom Pedro 2º ouviu sua voz. Marcelino ainda não sabia usar muitas palavras em língua portuguesa. Tropeçou um pouco.

— Vossa Majestade, eu nada posso dizer. Não nasci aqui. Sou italiano.

Para surpresa de Marcelino o monarca começou a falar em italiano com ele.

— Quando o velho André, o cocheiro da Santa Casa melhorar, eu tenho um lugar especial para você, como cocheiro.

— Vossa Majestade, o nosso velho André não retornará. Seu estado de saúde é muito grave. Estou treinado Arthur, o filho dele, para substituí-lo. Sua família está passando necessidades.

— Isto é uma outra coisa que eu preciso mudar neste país. O governo deverá tomar a seu encargo o sustento das famílias que perdem o seu chefe por doença ou acidente. Espero ter tempo para isto. Mas o que tenho para lhe dizer, meu jovem, é que nunca tivemos na Corte um cocheiro com um porte tão nobre como o seu. Minha família e eu nos sentiremos sumamente afortunados se pudermos contar com os seus serviços logo que você ache que o jovem Arthur poderá substitui-lo a contento na boleia de um veículo de tração animal.

Da algibeira de seu casaco o Imperador retirou um cartão de visita. Rabiscou nele algumas palavras e entregou-o a Marcelino.

— Quando decidir-se ser nosso cocheiro vá até o palácio e apresente este cartão à sentinela que faz guarda na guarita. Ficaremos aguardando por você.

Quase escurecia de todo quando a humilde charrete da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro cruzou os portões da Quinta da Boa Vista e dela descia, triunfalmente, o sorridente Dom Pedro 2º.

Acorreram os serviçais do palácio a fim de recepcionarem o Imperador. Eles já o conheciam sobejamente. Não era a primeira vez que se distanciava de seu séquito para conversas informais com amigos.

— Boa noite, Padre Archangello. Boa noite, Marcelino. Espero vê-los em breve por aqui.

Marcelino e o religioso também desceram da charrete e com os cerimoniosos gestos que a etiqueta requeria despediram-se do monarca.

No dia seguinte Marcelino chamou o assustado Arthur na pequena oficina do nosocômio.

— Agora vamos levar esta roda quebrada ao ferreiro e você ficará lá esperando. Mas terá que ajudar no serviço, ficar observando tudo bem de perto para aprender como se faz.

Dia por dia, pacientemente, Marcelino explicava ao moço todos os serviços inerentes a um bom cocheiro. Inclusive como se portar diante dos superiores. Fazia-o andar ereto e manter-se por horas em silêncio e com os ouvidos atentos.

Não demorou muito para Arthur assumir os encargos que foram de seu pai. Foi então que Marcelino pegou o cartão de visita que naquela tarde recebera das mãos do Imperador e apresentou-o à sentinela que encontrou na guarita do palácio da Quinta da Boa Vista.

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