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O cervejeiro da Lapa

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Valorizava o conhecimento. Não só estudar. Aprender um ofício também

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Por mais alguns anos Antônio Dittrich continuou a produzir pães e doces em sua afamada padaria. Na chácara criava porcos, galinhas, vacas leiteiras, seus briosos cavalos, árvores frutíferas, a plantação de cereais, a grande horta com uma imensa variedade de hortaliças.

Aos trinta e três anos de idade, no ano de 1898, resolveu mudar de atividade. Conhecedor da técnica de preparar o bom fermento resolveu montar uma cervejaria. Jovem ainda, em Viena, aprendera as sutilezas da produção do famoso líquido dourado, com suave espuma e inigualável sabor.

Instalou sua fábrica na periferia da Lapa, no bairro Casa de Telha, na antiga saída para Rio Negro.

Naquele tempo era usual estamparem-se nos rótulos os nomes em alemão. Antônio produzia duas marcas da saborosa bebida a Exportbier tipo kulmbach e a Pschorr-bier.

Preparava também uma cerveja tipo bávara por ele batizada com o nome de “Clarinha” além das excelentes gasosas com sabor de frutas.

Quem mais aprovou o seu sabor e cremosidade foi Jorge, o irlandês sogro de Antônio, o maior crítico das cervejas sem gosto que até então eram servidas na cidade.

Tanto as garrafas de vidro como a cevada e o lúpulo usados na fabricação do famoso líquido dourado e espumoso eram procedentes da Alemanha.

Pejorativamente qualquer coisa mal feita era chamada de “marca barbante”. Acontece que as cervejas daquela época eram fechadas com rolhas. A fim de não saltarem fora devido à fermentação estas tampas de cortiça eram amarradas ao gargalo com um barbante. E assim era a cerveja fabricada por Antônio Dittrich. De sabor inigualável segundo publicações da época. Que de “marca barbante” nada tinha.

No final dos anos 1930 do século passado a Cervejaria fechou as portas. Foram duas as razões do encerramento desta atividade. Uma delas, o alto preço dos impostos cobrados. Mas talvez o mais grave tenha sido a Segunda Grande Guerra Mundial. Não conseguiu mais importar cevada, lúpulo e o vasilhame que até então vinham da Alemanha.

Antônio era um homem bondoso e sorridente que ainda carregava na pronúncia o sotaque austríaco. Estava sempre rodeado de netos que ao redor dele ficavam para ouvir histórias esquecidas no tempo.  Com catorze filhos sempre havia um bando de crianças por perto. Eram cento e oitenta e três netos. De todas as idades. Viviam pedindo que ele repetisse a palavra macarrão. Só para ouvi-lo, a sorrir, falar mocorrrrrhhhonnn, carregando nos erres guturais.

Nasceu na exuberante Viena onde vivia rodeado da alegria reinante em uma cidade que, em todas as primaveras, enfeitava-se com as tonalidades das mais variadas cores que as flores podem exibir. Flores que desciam do alto de janelões e escorregavam por suas folhagens até o rés do chão. Flores que espalhavam suas cores em tantas esquinas, em tantas pérgulas, em tantos jardins.

Vivia rodeado da alegria dos bosques cobertos pelo verde dos abetos e pinheiros coroados com o branco da neve de todos os invernos. E nos folguedos das estações nevadas, entre os bosques de Viena circulava com seus patins. Ah! Os bosques de Viena. Consagrados em uma das mais belas valsas de Strauss.

Ele gostava de cavalgar pela chácara inteira e até para dar uma repassada e um bom dia aos amigos das chácaras vizinhas. Em sua charrete saia feliz com Luiza a fim de visitar os filhos e amigos que moravam na cidade. Cavalgava pelos campos em seu brioso corcel. Andava a passo lento nas tardes ensolaradas em que levava uma das crianças na garupa. Os netos faziam fila e até brigavam para ser o primeiro a trotear com o avô.  

Era um homem muito alto. Vestia-se com simplicidade. Com roupas comuns. Mas sempre com seu colete, alva camisa de colarinho e gravata. Como era usual na época em que viveu.

Gostava muito de cantar. Dizia que não conseguia mais tirar da garganta aquele de tenor que o consagrara. Mas quando estava a sós, acomodava-se em sua cadeira de balanço, em estilo austríaco, no avarandado de sua casa na chácara, soltava sua voz e solava as cordas de seu violão. Ou de seu violino. Diziam que até os passarinhos apoleiravam-se na balaustrada para ouvi-lo.

Pelas ações por ele realizadas no decorrer do Cerco da Lapa, tem seu nome gravado em uma placa no Panteão dos Heróis.

Panteão dos Heróis da Lapa/Divulgação

Assim como fora usual em sua família, na Áustria, fez questão de que todos os filhos e filhas estudassem. Valorizava o conhecimento. Não só estudar. Aprender um ofício também.

Dos homens, Adolpho, o mais velho cursou o ensino elementar até o oitavo ano. Ao completar catorze anos começou a frequentar a estação ferroviária da Lapa. Interessou-se pelas lides dos ferroviários locados na agência e mais intensamente por um estranho aparelho que emitia sinais sonoros em forma contínua. Parecia-lhe algo como um pica-pau a sonar por ali.

O que Adolpho ouvia era uma combinação de pontos e traços. Os pontos e os traços eram os dits e os dahs. O som curto, o ponto, era o dit. O longo, o traço, era o dahs. Assim começava a profissão que abraçou pela vida, a profissão de ferroviário. Todos os calouros, os iniciantes nesta arte em todas as redes ferroviárias do mundo eram chamados de Praticantes. Pois praticando tornavam seus dedos e seus ouvidos hábeis para emitir e captar os sinais do telégrafo, o código Morse.

Jovem ainda Adolpho já recebera sua primeira carteira de ferroviário atuando como telegrafista. Trabalhou em algumas agências da antiga Rede Ferroviária do Paraná. Precocemente já galgara o posto de Agente de Estação.

A primeira agência que deveria gerir localizava-se em um ponto distante da Lapa. Era uma cidade em ascensão onde já prosperava uma importante e grande serraria pertencente a um magnata americano. Um empreendimento gigantesco conhecido pelo nome de Lumber.

Ficou até nervoso ao desembarcar naquela estação férrea. Era intenso o movimento de vagões-plataforma carregados de peças planas de madeira serrada. Além das três linhas onde perfilavam-se aqueles vagões havia um sem número de desvios construídos especialmente para a grande serraria. Que era dona também da rede ferroviária.

No correr dos dias fez amizade com todo o povo daquela cidade. A maior parte de seus amigos trabalhava nos escritórios e na gerência dos mais variados departamentos da Lumber. Na Lapa pouco ou quase nada se sabia sobre a Guerra dos Fanáticos ou Guerra dos Pelados que já há alguns anos findara com o massacre de milhares de vidas. Os homens que trabalhavam na Lumber pouco ou quase nada deixavam escapar sobre aqueles turbulentos dias. Alguns moradores que viram de perto e viveram a guerra, muito às escondidas contavam-lhe de fatos horrendos, de degolas e fuzilamentos a céu aberto, do povo sofrido e de famílias inteiras massacradas ao longo do trecho em que a via férrea fora construída.

Os locais para se comer naquela cidade eram poucos. Comida trivial. Não mais que um insosso arroz com feijão acrescidos a um charque sem gosto. Então os amigos que trabalhavam no escritório da Lumber convidaram-no para dar um passeio com a litorina, um veículo a motor que trafegava pela linha do trem. Iriam até a estação Canoinhas, a quinze quilômetros de distância, onde poderiam saborear uma incomparável comida e excelentes vinhos daquele restaurante que era gerido por uma família italiana. Era só passar um aviso pelo telégrafo que os donos preparariam um almoço especial.

Num domingo Adolpho para lá se dirigiu com seus amigos.

Logo ao entrar no salão de refeições foi recebido por uma linda senhora loira, de belos olhos azuis que, ao lado de seu marido, sorridente, os recebia. Mas o que deixou Adolpho sem voz foi a deslumbrante visão da jovem que logo a seguir apareceu. Cabelos e olhos castanhos. Um penetrante olhar que parecia ler a mente dos circunstantes. A elegância francesa a desfilar entre um e outro prato servido. Adolpho extasiado não parava de olhar para ela. Até engasgou-se com a comida. Justificou-se dizendo que fora um pequeno osso de galinha que, distraidamente, deixara passar para além da faringe.

Apesar do pouco vinho que tomara retornou a Três Barras de olhos fechados em um deslumbramento como igual jamais sentira em sua vida.

Continua…

Alguns trechos deste texto foram baseados nas seguintes publicações:

  1. “Retratos” Zappa, Aline Dittrich. Editora Juruá. 2003.
  2. “Antonio Dittrich, o Cervejeiro da Lapa. “Cervisiafilia – A História das Cervejas no Brasil”.


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