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O Carteiro e o Poeta

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O sabor das palavras

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Se há alguma dúvida de que as palavras têm sabor, elas são dissipadas quando lemos a embriagante narrativa O carteiro e o poeta, de Antonio Skármeta.

Os leitores de Pablo Neruda sabem como seu estilo é sensual, ímpar e inefável. Descrevê-lo, dessa forma, é tarefa quase impossível, correndo o risco de ser injusto e diminuir a qualidade literária desse poeta. No entanto, Skármeta, além de escrever de forma tão estonteante quanto o Prêmio Nobel do Chile, consegue narrar a influência de suas palavras e a transformação de um pescador, ávido de paixão, em um poeta contumaz.

O enredo aborda um fragmento da vida de Neruda, a saber, o período em que esteve exilado na Itália e que interagia com poucas pessoas, dentre elas o carteiro Mario, que já era fã de suas obras. Com o pretexto de pedir um autógrafo, a amizade se inicia, e vai além do recebimento das missivas:

Crescido no seio de pescadores, nunca o jovem Mario Jiménez suspeitou que no correio daquele dia haveria um anzol com que apanharia o poeta. Mal lhe entregara o fardo, o poeta distinguira com precisão meridiana uma carta cujo envelope rasgou diante de seus próprios olhos. Essa inédita conduta, incompatível com a serenidade e discrição do poeta, encorajou no carteiro o início de um interrogatório e, por que não dizê-lo, de uma amizade (SKÁRMETA, 1999, p.18).

E, aos poucos, o carteiro se interessa pelo sabor e pelo saber intrínseco das palavras, e indaga o poeta sobre o processo composicional de seus escritos. Carente de técnica literária, mas munido do encantamento provocado pela poesia, elabora, espontaneamente, sua primeira metáfora após ouvir a declamação de uns versos sobre o mar e sentir-se vertiginoso: “Eu ia como um barco tremendo em suas palavras” (SKÁRMETA, 1999, p.23).

Enquanto estava lendo, constatei que se contagiar com o estilo de Neruda é inevitável, pois, além do carteiro que se torna poeta, do autor que elabora um enredo que suscita significados conotativos em cada linha, como em “Tudo que no mar era eloquência, nele foi mudez. Uma afonia tão enérgica que, em comparação, até as pedras lhe pareciam tagarelas” (SKÁRMETA, 1999, p.25), nós, leitores, também somos impulsionados a compor, sobretudo quando acompanhados a lição sobre metáforas. Pablo Neruda explica a Mario que ele deve perceber, com olhos aguçados, o mundo que o cerca, na medida em que tudo é objeto para poesia, ou seja, as figuras de linguagem estão pulsando em todos os lugares, basta desbravá-las e enlaçá-las em versos (viu só, tornei-me poeta também!).

De todas as descrições metafóricas, nada se iguala à reprodução do instante em que Mario se apaixona perdidamente por Beatrice. É impossível não imaginar o momento e cada detalhe oriundo do mesmo. O leitor se imiscui nos pensamentos do carteiro e justifica para si seu aparvalhamento:

Adivinhando que o tédio da rotina iria se somar à depressão, entrou no lugar disposto a converter em vinho a gorjeta do poeta, quando foi invadido por uma embriaguez mais cabal do que nenhum mosto lhe havia provocado em sua curta vida: jogando com os oxidados bonecos azuis encontrava-se a garota mais linda que recordava ter visto, incluídas atrizes, lanterninhas de cinema, cabeleireiras, colegiais, turistas e vendedoras de discos. Embora sua ansiedade pelas garotas fosse quase equivalente à sua timidez – situação essa que o consumia em frustrações -, dessa vez avançou até a mesa de totó com a ousadia da inconsciência. Deteve-se atrás do goleiro vermelho, dissimulou com perfeita ineficiência seu fascínio acompanhando com olhos saltitantes os vaivéns da bola, e quando a garota fez troar o metal da defesa com um gol, levantou a vista para ela com o mais sedutor sorriso que pôde improvisar (SKÁRMETA, 1999, p.26).

Percebam que essa descrição estonteante é a visão de Antonio Skármeta acerca do que imaginara ter sido a sensação do carteiro quando conheceu sua diva. O que se adensa quando narra a percepção que Neruda tivera sobre a garota responsável pela paixão arrebatadora de seu amigo Mario: “[…] a pele exigia o retorno minucioso sobre cada segmento até alcançar esses olhos cafés que souberam mudar da melancolia à malícia enquanto estiveram sobre a mesa dos frequentadores” (SKÁRMETA, 1999, p.37).

Tendo o melhor dos professores e a bela paisagem italiana como inspiração, Mario consegue conquistar Beatrice com suas metáforas incisivas. Porém, à alegria do casamento e de ter Neruda como padrinho, soma-se a tristeza de vê-lo partir em missão diplomática para Paris. Pois nem só de sensualidade literária vivia, sendo um grande ativista das causas humanitárias e avesso ao regime ditatorial.

O desfecho é mórbido porque o poeta, que tanto amou a vida e a celebrou, foi ceifado pelo pior que pode ocorrer a um homem: a privação da sua liberdade devido às lutas contra o autoritarismo que se instalara em seu país. Entretanto, deixou suas sementes literárias, históricas, sociais e, principalmente, seu tão latino ímpeto de vida, não apenas para Mario e Beatrice, ou para o autor de “O Carteiro e o Poeta”, mas para todos nós, seus apaixonados leitores!

(SKÁRMETA, Antonio. O Carteiro e o Poeta. Rio de Janeiro: Record, 1999).

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