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Possíveis interpretações da pobreza no Brasil e a covid

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Sandra Eloísa Pisa Bazzanella*

Sandro Luiz Bazzanella**

A pandemia da covid-19 nos acompanha há pouco mais de um ano. Neste período presenciamos diferentes países lidarem com essa infeliz realidade de diferentes formas e, do mesmo modo, diferentes países serem afetados de diferentes formas. No Brasil, a dicotomia saúde-economia pautou parte das discussões em torno do enfrentamento da pandemia por parte de governos que, ao que a realidade parece apresentar, não obtiveram sucesso em conter os casos de contaminação e de óbito do novo coronavírus, tampouco em garantir os menores impactos econômicos possíveis.

    No primeiro trimestre de 2021, no Brasil, o desemprego atingia cerca de 14,7% da população, perfazendo um total 14,8 milhões de brasileiros desempregados. O maior número de desempregados desde o início da contagem de trimestres da série histórica em 2012, segundo o IBGE[1]. As informações ainda dão conta de que em um ano cerca de 1,9 milhão de pessoas passaram a enquadrarem-se como desempregadas. Ainda que esta já fosse uma taxa esperada em relação ao primeiro trimestre de cada ano, que costumeiramente apresenta as maiores taxas de desemprego, não nos parece que deva ser uma questão ignorada. Isto porque existe outro dado que deve ser observado. O número de desalentados. O número de pessoas desempregadas que pararam de procurar emprego é somado em torno de 6 milhões.

            Em relação à educação, no ano de 2020 cerca de 5,1 milhões de crianças não tiveram acesso à educação, segundo o estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um Alerta sobre os Impactos da Pandemia da Covid-19 na Educação”, lançado pelo UNICEF em parceria com o CENPEC[2]. Segundo o Chefe de Educação do UNICEF, o número de crianças e adolescentes sem acesso à educação no ano de 2020 se assemelha ao número do ano de 2000. Isso significa a possibilidade de um retrocesso de 20 anos durante a pandemia. Ainda, o estudo demonstra que o maior contingente de excluídos encontra-se nas regiões Norte e Nordeste, em áreas rurais, e sinaliza que 70% dos excluídos são compostos de pretos, pardos e indígenas.[3]

            Mas façamos um exercício de imaginação. Vamos supor o Carlos. Um menino de 10 anos, que vive na região nordeste do país. Os pais de Carlos são assalariados, e, como parte dos habitantes do nordeste, viram a renda da família diminuir com a perda do emprego de um dos pais de Carlos durante a pandemia da covid-19. A família de Carlos, durante um bom tempo, precisou colocar toda a sua renda e seus esforços em garantir sua sobrevivência. Pagar as contas, comprar comida, bens de primeira necessidade. Infelizmente, dentre estes bens não encontrava-se um celular, tampouco um computador, para que Carlos pudesse assistir aulas online enquanto as escolas encontravam-se fechadas.

            Agora vamos supor o José. José vive no Sul, a região menos afetada pelo desemprego em 2020, segundo o IBGE[4]. Os pais de José, se levarmos em conta as estatísticas, não sofreram com a perda de seus postos de trabalho, ainda que não seja impossível que tenham sofrido alguma perda salarial. Entretanto, José não possuiu dificuldades para acessar aulas online, pois mesmo que não possuísse computador próprio, pode usar o computador da família. Neste sentido, José conseguiu acompanhar as aulas, ao contrário de Carlos.

            Daqui já é possível presumir que os dois meninos não possuirão as mesmas capacidades, já que na idade em que elas deveriam ser desenvolvidas em determinados aspectos de suas potencialidades, um não conseguiu sequer assistir às aulas. Mas suponhamos que os anos passem e os garotos adentrem o marcado de trabalho. José, com formação no ensino básico conseguirá um emprego com 40 horas semanais que o remunere de acordo com sua formação. Carlos, que ficou sem contato com a escola durante o ano de 2020, não conseguiu o mesmo emprego que José, pois não possuía a qualificação necessária. Com uma renda abaixo de um salário mínimo, as condições que Carlos terá para sustentar a família serão menores que as de José. Carlos poderá vir a ser, inclusive, classificado como estando abaixo da linha da pobreza. Por falta de qualificação, os empregos de Carlos sempre possuirão remuneração abaixo do necessário para manter a família do rapaz. De quem é a responsabilidade por esta situação?  

            Tentemos partir de um pressuposto meritocrático. Nesse sentido, cada um é responsável por seu sucesso ou fracasso. A educação pública foi ofertada tanto para José quanto para Carlos, e tanto um como o outro possuem a liberdade de se inscreverem em cursos superiores ou técnicos, adquirir novas habilidades, investirem em si mesmos, tornarem-se, melhor dizendo, empresários de si mesmos, empreendedores.

            Essa realidade, entretanto, parece um pouco insustentável para Carlos, que com o salário que recebe mal consegue pagar as contas e alimentar a família. Mas sem uma formação, uma especialização, ao menos um ensino técnico, não há como conseguir um emprego melhor, Carlos ouvirá. Se ele não se propõe a investir em si mesmo, no seu capital humano, então ele não conseguirá nada. Carlos não investe, sabemos de suas condições. Consequentemente, Carlos não consegue ascender economicamente.

            Carlos deve ser um preguiçoso! E deve assumir as consequências de seu fracasso pessoal!

            Este exemplo, que aqui utilizamos é apenas um exemplo. Infelizmente, ele pode ser constatado cotidianamente na realidade de uma sociedade periférica como a brasileira. Nosso intuito com esta breve história, é nos perguntarmos: quais os limites da meritocracia? Quais os limites da responsabilidade individual?

            Isto porque, sobretudo nos últimos anos, nos deparamos diariamente com incentivos ao aprimoramento pessoal como chave da realização profissional e, consequentemente, pessoal. Aliado a isso, nos deparamos com discursos que enfatizam a responsabilidade individual em detrimento da compreensão dos inúmeros fatores sociais, políticos que influenciam o perfil socioeconômico do trabalhador brasileiro. Não nos parece o caso de retirar todas as responsabilidades da esfera individual, mas de reconhecer, entretanto, que a esfera individual não carrega 100% da culpa de fracasso ou do mérito do sucesso.

            Compreender que os indivíduos não agem livre e isoladamente em uma sociedade é condição necessária para a compreensão de que os resultados de suas ações não dizem respeito unicamente ao quanto se esforçaram, ou não, para obter os resultados que obtiveram. Exemplo disso é a pandemia da covid-19. Com uma gestão de crise deplorável, não é de se espantar que mesmo os melhores produtores de eventos passassem dificuldades; que mesmo os melhores eletricistas veriam sua renda diminuir; que mesmo os melhores comerciantes não possuiriam mais o mesmo número de clientes. De um dia para outro, estes produtores, eletricistas, comerciantes, viraram grandes incompetentes que não se esforçaram o suficiente para manter a clientela e seus níveis salariais?

            É necessário repensar as opiniões prontas de que “é pobre quem quer”, “cada um é responsável por sua condição econômica”, “os pobres não querem sair da situação em que estão, caso contrário se esforçariam mais”. É necessário reconhecer que em uma sociedade marcada por precariedades sociais, políticas, educacionais, e, sobretudo diante da inconsequente administração da pandemia no último ano, os impactos econômicos na vida dos trabalhadores brasileiros é significativo em função das inúmeras variáveis aqui descritas, entre outras que necessitam ser compreendidas suficientemente. Diminuição de postos de trabalho, inflação acompanhada de menor poder de compra, aumento de bens de consumo básicos, como gás, energia elétrica, gasolina, dificuldades de acesso a bens como a educação e até mesmo a saúde. Aqui é preciso ter presente todos aqueles cidadãos brasileiros entubados em função da covid-19 e, que morreram asfixiados nos leitos dos hospitais por falta de oxigênio.

            Reconhecer que a realidade social também impacta os rumos da vida de crianças e adultos permite reconhecer que todos nós, bem ou mal sucedidos, somos parte de uma sociedade, somos influenciados pelas condições a que fomos submetidos ao longo da vida, bem como influenciamos os rumos de uma sociedade toda vez que exercemos, por exemplo, o direito e o dever do voto. Mais do que isso, reconhecer que as esferas individual e social complementam-se permite rever pré-concepções de toda ordem, evitando generalizações apressadas e até mesmo preconceituosas que não correspondem à realidade e ignoram o fato de que somos seres circunscritos em tempo, espaço e contexto histórico.

*Sandra Eloisa Pisa Bazzanella

Estudante de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina

[email protected]

**Sandro Luiz Bazzanella

Professor de Filosofia      [email protected]


[1] Fonte: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/05/27/desemprego-atinge-147percent-no-1o-trimestre-diz-ibge.ghtml

[2] Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura, e Ação Comunitária.

[3] Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2021-04/mais-de-5-milhoes-de-criancas-e-adolescentes-ficaram-sem-aulas-em-2020

[4] Fonte: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/03/10/desemprego-bateu-recorde-em-20-estados-brasileiros-em-2020-diz-ibge.ghtml

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