sexta-feira, 19

de

abril

de

2024

ACESSE NO 

O adeus à Vila de San Michelle

Últimas Notícias

- Ads -

Milhares de jovens abandonaram a vida nos campos e foram trabalhar como operários nas fábricas

- Ads -

Marcelino apresentou-se ao chefe da guarda do Palácio da Quinta da Boa Vista. Entregou-lhe o cartão de visita que Dom Pedro II lhe dera. De imediato foi recebido pelo próprio Imperador que o nomeou seu cocheiro particular. Era só buscar os poucos pertences que acumulara no período em que ficara trabalhando na Santa Casa. Curvou-se, quase genuflexo, diante de suas abnegadas salvadoras, agradeceu o que ali recebera e seguiu seu caminho.

Em cartas a seus pais e à sua amada Thereza contou de seu novo trabalho. Agora poderia economizar dinheiro e logo retornar para a Itália. Talvez até conseguisse viajar engajado como marinheiro em algum cargueiro. Aguardava, no entanto, a sua reintegração na Companhia de Navegação. Enviara a seu pai todos os documentos emitidos pelas autoridades policiais do Rio de Janeiro, comprovando o assalto que sofrera e suas consequências.

Atestados dos médicos e dos diretores da Santa Casa de Misericórdia, com as devidas assinaturas reconhecidas em cartório haviam sido entregues, formalmente, por seu pai nos escritórios da empresa naval em Veneza. Nenhuma resposta de reintegração até então recebera. Mas tinha dentro dele uma fé inabalável e a esperança de que, quando lá se apresentasse, voltaria a navegar.

O Imperador Dom Pedro II fora acometido por estranha doença e percorria as grandes clínicas europeias a fim de se recuperar. Sua filha primogênita, a Princesa Isabel, estava à frente do governo do Brasil. Especulações em torno de uma possível libertação dos escravos e as consequências decorrentes para o Império eram iminentes.

Inúmeros compatriotas de Marcelino desembarcavam de navios procedentes tanto de Gênova como de Nápoles. Soube por eles que a vida em seu país já não seria mais possível. Pragas devoravam as lavouras. Era mais fácil encontrar pepitas de ouro do que grãos de trigo. Em desespero, milhares de imigrantes lotavam carroções com destino às plantações de café.

Como a sua profissão era a de viajar pelos mares Marcelino imaginava chegar em Veneza e logo retornar ao seu antigo posto na Companhia de Navegação.

Sabia que no porto do Rio de Janeiro não conseguiria convencer um comandante a colocá-lo como Imediato, função que ocupara anteriormente. Mas imaginara que pelo menos um grumete poderia ser. Após alguns meses perseverando em suas idas ao cais conseguiu seu intento. Como embarcadiço, um dia deixou o Rio de Janeiro com destino ao porto de Marselha, na França. Um barco pesqueiro levou-o até Gênova onde tomou um trem com destino a Verona. Exausto lá desembarcou. Conseguiu uma charrete de aluguel. Nela colocou seus pertences. Trazia pouca bagagem pessoal, alguns presentes para sua amada Thereza e lembrancinhas tropicais para todos.

Já no grande portão que ficava na entrada da propriedade dos Cailoto sentiu a desolação. Rachaduras nas colunas de pedra. Ferrugem a devorar as ferragens. Touceiras de capim amarelado a tomar conta do que fora um multicor jardim atapetado das mais belas flores.

Parecia que Thereza esperara por ele em todos os dias desde que partira. Mal ouviu o ruído das patas dos cavalos e das rodas de ferro sobre as pedras polidas da estrada, saiu quase a voar a seu encontro. Soluços convulsivos em seu ombro que o aconchego do forte e desmesurado abraço não conseguia amenizar. Em instantes, atrás dela, um chorinho incessante a se enrodilhar em suas saias. A voz de Mamma Angela, de longe, a chamá-los, aliviou tensões que envolviam saudades, agonia, êxtase, num circuito imorredouro entre seres que a distância separara por um tempo infinito demais.

Luigi encontrava-se acamado há muitos meses já. Começara claudicando um pouco, por causa de dores em um dos membros inferiores. Velhice chegando, pensaram eles. Mas era bem mais grave. Quando a dor tornara-se irreversível e insuportável, a amputação ao nível superior da coxa foi a única solução. Sobreviveu à terrível cirurgia. Nem conseguiu colocar uma prótese de madeira, como era usual para estes casos. Uma hemorragia cerebral deixou-o totalmente inválido.

Os colonos mais jovens perceberam que a terra já pouco produzia. O que plantavam e colhiam mal dava para o sustento da família. Que era sempre grande. A cada geração menor área de terra cabia a cada um. Muitos filhos a quem repartir a cada vez mais pequenas glebas. Um solo gasto pelo cultivo incessante.

Fábricas produziam em grande quantidade tecidos de seda e tecidos de lã a competir, assustadoramente, com os pequenos artesãos que manuseavam seus teares.

Milhares de jovens abandonaram a vida nos campos e foram trabalhar como operários nas fábricas.

A crise econômica aliada às transformações políticas fez com que a cada dia mais compatriotas dos Cailoto fossem tentados pelo cântico e pela voz das sereias que contavam das maravilhas das terras do sul do Brasil. E levas e mais levas de italianos, a cada semana, desembarcavam nos portos do Rio de Janeiro e de Santos.

— Mas por que não me escreveram contando tudo isto?

— Nem ânimo nós tínhamos para contar estas tristezas. Você já estava passando por tantas coisas, sozinho, filho meu —lastimava-se Mamma Angela.

A noite foi curta para Marcelino contar todas os percalços e bons momentos também pelos quais passara. A noite fora curta para Marcelino e Thereza amenizarem, em parte, o longo tempo de ausência. Mas o Enzo? Pobrezinho! Após muito chorar agarrado nas saias da mãe, em seu colo aconchegado entrou em casa. Olhava para o estranho que abraçava Thereza e, continuamente, afastava as mãos dele dos ombros dela. Como a dizer que aquela linda mamma era propriedade dele. Dele, apenas. Após Mama Angela lhe dar um saboroso prato de sopa de aletria, dormiu em seus braços e deixou Thereza nos de Marcelino.

No dia seguinte foram a Veneza. O encontro com Domenico e Pietronella não foi tão efusivo. O circunspecto pai de Marcelino ainda duvidava do tal assalto. Viu as cicatrizes em sua cabeça, em seu corpo.  

Após ler as cartas de Madre Maria Albertina, da Irmã Maria Consolata e de Padre Archangello que Marcelino lhe entregou, parece que seu olhar se desanuviava. Pietronella nunca duvidara da retidão de seu filho. Daria a vida por ele. Abraçou-o com ternura e chorou como apenas as mães choram ao rever um filho que jamais imaginavam acolher novamente em seus braços.

Marcelino contou suas passagens. Falou do carinho e esmero com que fora tratado na Santa Casa de Misericórdia. Dos trabalhos que executara. Que agora era um mestre-cocheiro.

— Sabem que eu era a única pessoa que podia andar de chapéu na frente do Imperador?

— Claro, meu filho. Um cocheiro jamais dispensaria um chapéu.

No correr dos dias a família inteirou-se de suas agruras e Domenico incentivou-o a procurar novamente seus antigos patrões.

De volta a Verona, Marcelino tentou internar Luigi em uma casa de saúde. Os médicos afirmaram-lhe que não valeria a pena causar-lhe o sofrimento de transportá-lo até o nosocômio. Piorava a olhos vistos. Não demorou muito e dele se despediram para sempre.

Gioachino e Stella encontraram seus amores. Noivaram e casaram. Cerimônias simples, pois já era tempo de espigas secas e vacas magras. Formaram um grande grupo com amigos, vizinhos e outros interessados e num belo dia dirigiram-se a Gênova onde embarcaram, felizes, em busca de uma vida melhor nas terras do sul do Brasil.

Marcelino tentou ser reintegrado em sua antiga Companhia de Navegação. Mas tanto nela como nas demais onde procurou emprego, foi tratado como um pária que denegrira a imagem da marinha italiana.

Tentou, desesperadamente, outros empregos. Embora o mar fosse a sua vida precisava fazer qualquer coisa para a sobrevivência de sua família. Tantos ofícios aprendera nos dias em que vivera da benevolência das Irmãs da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Mas nada encontrava. Nem em Veneza, nem em Verona e nem nas cidades adjacentes. Para os poucos empregos já havia longas filas de pretendentes.

Imaginou retornar ao Brasil. Mas lá as coisas já não eram as mesmas. Não podia contar com o apoio de Dom Pedro II e nem da Princesa Isabel que era a Imperatriz do Brasil. Outro mundo circulava em torno dela. Como aproximar-se?

De tanto ler jornais em busca de algo descobriu que em Montevidéu, capital do Uruguai, uma empresa de navegação estava em busca de marinheiros habilitados para trabalharem em barcos que operariam na travessia do Rio da Prata entre aquela cidade, Santana do Livramento e a capital da Argentina, Buenos Aires.

Thereza aceitou, de imediato, a mudança. Praticamente abandonaram a propriedade dos Cailoto. Conseguiram algumas liras pelos animais, pelos veículos. As benfeitorias já se encontravam em deterioração crescente. Encheram muitos baús de metal e grandes caixas de madeira com o que puderam.

Precisavam economizar cada níquel. Seria muito dispendioso tomarem um trem. Além das passagens precisariam pagar também para despachar os grandes baús. Decidiram viajar até o porto de Gênova no carreto que sobrara inteiro. Nele conseguiram acomodar-se com suas bagagens. Atrelaram o cavalo de estimação de Thereza. Marcelino seguia montado em outro. E uma vaca leiteira, vagarosamente ao lado, a fazer parte da comitiva. Teriam leite até a hora do embarque no navio em Gênova. Levaram dias nesta lenta jornada.

Um dia, pela última vez, Thereza passou pela porta de San Michelle. Para nunca mais voltar.

 Porta de San Michelle, por onde ela passou tantas vezes com seu carreto carregado de produtos do campo para vender na cidade. Levando ovos e leite, manteiga e queijo, frutas e verduras, couro e banha. Mas levando também tecidos de seda e tecidos de lã.

Tecidos de lã, da lã das ovelhas que nos pastos criavam, da lã que enrolavam, da lã que enleavam e em tecidos em seus teares transformavam.

Tecidos de seda. Da seda dos bichos-da-seda, que nas frondosas amoreiras cultivavam. Da seda que enrolavam e enleavam e em tecidos, em seus teares, transformavam.

A Porta de San Michelle, por onde da cidade saíam, portando consigo o que não produziam e do que necessitavam para o seu dia a dia.

A Porta de San Michelle, de onde Thereza saiu um dia, muito jovem ainda, com sua família, seus pertences, as preciosas joias de sua família e seu já grande conhecimento da vida, rumo à América, à nossa América.

Continua…

- Ads -
Olá, gostaria de seguir o JMais no WhatsApp?
JMais no WhatsApp?