quinta-feira, 28

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março

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2024

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O adeus a Gustav

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A trote lento e a conversar foram os dois galgando a íngreme montanha

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O dia fora longo e carregado de emoções. Até tentaram aliviar as tensões quando o jantar foi servido. Conversas monossilábicas. Por mais que Gustav tentasse contemporizar com seu bom humor e suas velhas histórias, Rolf e seus avós mantinham-se quase mudos. Imediatamente após a sobremesa ser servida, com um lacônico boa noite e um beijo na testa de seu trisavô recolheu-se a seus aposentos.

Logo que o dia amanheceu desceu aos estábulos e foi atrás do fiel Herman.

— Desculpe-me incomodá-lo em seus afazeres, Herman, mas preciso de sua ajuda. As ferramentas e tudo o que levei ontem para o alto da montanha lá permaneceram. Ficaria feliz se o senhor fosse até lá comigo. Pode ser?

— Primeiramente, Rolf, não me chame de senhor. Não me transforme em um velho antes do tempo. Irei junto, sim, mas antes de tudo vamos tomar este forte café que acabei de coar, junto com um fresco e quentinho leite que o pessoal acabou de tirar das vacas.

Encilharam os cavalos, bem como a mula que se encarregaria de transportar a carga. Nisto Rolf viu no estábulo ao lado o matungo que levara Bernard até a montanha.

— O senhor… quer dizer, você não o levou ontem para a fazenda do tio?

— Levar, até levei, mas o pessoal de lá asseverou-me que aquele cavalo não pertence àquela propriedade…

— Bem como percebi… havia muita coisa errada nesta história.

A trote lento e a conversar foram os dois galgando a íngreme montanha. Em um trecho do caminho encontraram um jovem que pastoreava umas cabras a fazer sinal para eles. Todo circunspecto, cheio de mesuras diante dos dois cavaleiros, meio a gaguejar, cumprimentou-os.

Herman e Rolf já iam tirando algumas moedas da algibeira para dar ao que pensavam ser um pedinte.

— Não, senhores, não estou a pedir ajuda em dinheiro. Mas como ontem eu vi uns cavaleiros subindo esta trilha, coisa que raramente acontece, e hoje os vejo aqui eu precisava saber se os senhores não conhecem um senhor de nome Herbert Zipperer. Era um dos que passaram por aqui. Levou o meu cavalo emprestado e deixou o dele comigo para garantir que logo o devolveria. Mas logo que ele saiu de nossa choupana, que fica umas duas léguas de distância daqui, o cavalo dele voou em disparada montanha abaixo e sumiu…

Rolf e Herman olharam-se e nada falaram. O moço continuou a contar as proezas que presenciara na véspera.

— Ele também deixou suas roupas conosco. E pediu para vestir uns velhos andrajos nossos, meio puídos já e que eram de nosso pai. Tirou tudo o que havia dentro dos bolsos de seu casaco e de seus calções, como moedas, papéis e até uma pistola… Mas o que eu quero mesmo é o meu velho matungo porque preciso muito dele para o meu trabalho de pastorear estas cabras aí pelos montes.

Resolveram acompanhar o jovem pastor até a sua morada. O que imaginaram comprovou-se logo que puseram os olhos nas vestimentas lá deixadas, na véspera, por um desconhecido.

— As roupas do senhor Bernard! — Exclamou Herman. E continuou — Rapaz, nossa propriedade não é muito distante daqui. Seu velho amigo lá repousou esta noite e foi bem alimentado. Comeu o feno que um dos nossos leva três dias para comer… Devia estar com muita fome…

— É para o senhor ver. Nós aqui ganhamos pouco e quase nem dá para o nosso sustento. O bicho come o que encontra por aí pelas encostas…

Despediram-se do rapaz, prometendo levá-lo junto quando retornassem do alto da montanha. Logo que chegaram no local onde ficara jogada a carga da véspera, viram o pastorzinho a se aproximar. Sorrindo foi se explicando.

— Depois que eu vi aqueles cavalos, inclusive o meu, em disparada, montanha abaixo subi até aqui. Vim por outra trilha, a mesma pela qual subi agora. Curiosidade, sabe. Lá embaixo ouvi o eco de um tiro a se repetir pelas encostas. Como eu tinha visto a pistola na mão do homem e depois aquele tropel montanha abaixo fiquei a imaginar coisas… Encontrei só uns pingos de sangue ali bem rente ao abismo… e a arma caída aqui ao lado. Fiz a besteira de pegar nela, sabe. Só então me dei conta de que se tivesse algum morto lá no fundo do precipício e alguém, de repente, aqui chegasse e me visse com ela nas mãos, eu já seria suspeito. E os senhores, sabem, já seria condenado e morto por um crime que não tinha nada a ver comigo. Sabem, né, pobre sempre leva a culpa. Joguei a pistola naquele buraco e quase a escorregar desci pela minha trilha… O resto os senhores já sabem.

O jovem pastor ajudou-os a colocar a carga sobre o lombo da mula. Como o rapaz era muito magro disseram-lhe que se ajeitasse junto com as ferramentas. Assim já poderia pegar seu cavalo e voltar com ele para sua casa.

Nenhum comentário Rolf e Hermann teceram durante a viagem de volta. Fizeram o rapaz comer algo junto com os demais cavalariços que se encontravam a almoçar. Deram-lhe algumas moedas. Herman ofereceu-lhe um emprego na cavalariça. Mas o jovem recusou. Nascera e vivera até então em meio aos montes, entre os criadores de cabras e acreditava não se acostumar em outro mister.

Quando o rapaz se aprontava para montar em seu cavalo, irrompe Franz no estábulo. O susto foi grande ao ver como o animal estava feliz junto de seu dono bem como quando pôs os olhos sobre a roupa de Bernard.

— O que significa tudo isto?

Herman e Rolf, em seu íntimo, imaginavam nada mais comentar sobre os acontecimentos da véspera. Mas o falante pastorzinho foi logo explicando tudo. E até a pistola mostrou a Franz. Que implorou a todos que nada contassem a Gustav. O velho estava já tão abalado com o que acontecera que o melhor a fazer seria poupá-lo de tão triste verdade. Logo que o rapazola sumira na distância com sua montaria, Franz ajoelhou-se diante de Rolf, pedindo perdão por suas duras e intempestivas palavras da véspera.

— Por que você não nos falou que ele portava uma arma. Você ainda amenizou o que meu filho fez. Pelo amor de Deus, perdoe-nos, a mim e a Sophie, que, embora calada, concordara com tudo o que falei.

— De nada adiantaria eu tentar explicar alguma coisa. Vocês não me ouviriam mesmo. E depois aquilo tudo foi tão rápido. Bernard, a rir e a debochar, começou a caminhar de costas até a beira do abismo. Foi num átimo que percebi a pistola em suas mãos, ouvi o estampido, vi o clarão no ar e ele a despencar… A primeira coisa a pensar naquele instante é que fosse um ato de suicídio. Quando me abaixei sobre a borda e o vi, a gesticular com uma das mãos, enquanto, com a outra agarrava-se ao tronco daquela árvore, só pensei em socorrê-lo com a maior rapidez possível. O resto eu veria depois…

Nada mais restava a Rolf a não ser arrumar suas coisas, despedir-se, agora com mais calma, de todos e tomar o trem de volta para Viena. Não conseguiria permanecer por mais tempo em meio a tantos que o consideravam um intruso. O pior mesmo eram as palavras que corroíam sua mente. As palavras que seu avô, justamente seu avô —em quem ele colocara todo o seu amor, a sua fé e a sua esperança—, jogara, sem dó, sobre sua cabeça.

Enquanto arrumava seus pertences, sentiu que precisava ir aos aposentos de Gustav e tocar as melodias que ele tanto amava. Passou horas junto a seu leito. O jantar logo seria servido. Rolf sentiu-o como uma festa de despedida. Sophie olhava-o com o mais terno dos olhares. Servira-o com tanto carinho. Fizera aquele apfelstrudel especial que ele tanto gostava. Ela não sabia mais o que fazer a fim de afastar as imagens tristes dos últimos dias. Nada que fizesse mudava a dureza dos gestos de Rolf para com eles. O sofrimento de Sophie não tinha fim. Maldizia-se por ter seguido as ordens de seu marido e do filho que tantas aprontara contra tantos no decorrer de sua vida. Já tivera alta do hospital. Já se encontrava em sua casa. Mas as cicatrizes do mal que causara permaneceriam no ar para sempre. Agora ela perdia o seu menino. Talvez nunca mais o visse. Talvez nunca mais dele recebesse um abraço, um carinho. Após o jantar tomou o rumo de seu quarto. Em silêncio. Franz notou que algo a consumia. Teve a infelicidade de ir atrás dela e inquiri-la. Foi então que a tempestade desabou sobre ele. Gritos histéricos ecoaram através das paredes do casarão. E chegaram aos ouvidos de Gustav que se encontrava em sua cadeira de rodas, na grande varanda da frente, a desfrutar do nascer de uma exuberante lua cheia. Sons que não se lembrara de ter ouvido em algum momento de sua vida. Quis correr, voar para dentro para ver o que estava acontecendo. Tentou, com o maior esforço, mover sozinho as rodas da cadeira. Que viraram de lado. O tombo foi iminente e fatal. Uma fratura exposta no terço médio do fêmur. Como navalha as arestas do osso quebrado cortaram a artéria femoral e uma hemorragia incoercível levou o velho patriarca a um choque irreversível.

Rolf viera até ali a fim de despedir-se de Gustav e dele ouvir os últimos conselhos. Não era assim, no entanto, que imaginara ser o seu fim. A desolação tomou conta da família.

A notícia de sua morte espalhou-se como um eco pelas encostas das montanhas. Logo o pátio defronte à grande casa estava repleto de familiares e amigos. Montanhas de flores trazidas das montanhas e dos campos encheram a casa.

Das trilhas que percorria cuidando de suas cabras o pastorzinho amigo de Rolf trouxe uma cesta cheia com as mais belas, mimosas e místicas edelweiss, a flor que Gustav mais amava. Que cobriu seu corpo e seu túmulo quando seu espírito voou ao encontro de sua Elfried.

(Mais um trecho de um livro em construção)

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