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abril

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No tirol austríaco: A trágica noite de tempestade na montanha

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O vento rugia atônito, vergando pinheiros, quase fazendo com que suas copas beijassem o solo

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Mergulhado em seus pensares, revivendo aqueles tristes dias e os caminhos que seguiram seus filhos, estava o velho Gustav acomodado, quase cochilando em sua velha cadeira quando percebe o tumulto em seu redor.

Naquela tarde em que se prenunciava uma nevasca extemporânea e intensa encontrava-se a família numa apreensão geral. Os garotos mais jovens, adolescentes impetuosos, haviam saído na véspera, mal raiara o dia, com suas mochilas e cordas, seus grampos e picaretas, rumo ao mais alto pico, distante mais de um quilômetro, em linha reta, de onde moravam. Pretendiam escalá-lo e acampar em seu pico, a mais de dois mil metros acima do nível do mar. Despedida do verão, disseram a sorrir, no adeus que deram aos seus. Já deveriam estar de volta. Os dias ainda não eram curtos. Mas o sol já estava quase a se pôr. E nem vislumbre dos garotos na distância.

O velho Gustav pediu aos pequenos que não tirassem os olhos do horizonte. Clamava alto para o filho e para os netos que encilhassem as montarias. Que as atrelassem ao carro enquanto ainda era tempo e fossem ao encontro dos dois malucos aventureiros.

Enquanto isto Maria, esposa de Willy, seu bisneto, começou a sentir as contrações uterinas. Espaçadas, ainda, mas contrações. Vendo aquele terror dominando a família, nem ousou comentar que poderia ser hora de seu bebê vir ao mundo. Em sua ingenuidade imaginava que tudo aconteceria normalmente e que nem precisaria de ajuda. Que sua sogra, mesmo, poderia segurar a criança na hora em que chegasse ao mundo.

Como, naquela angústia toda, pedir que alguém fosse até a casa de Frau Astrid, a velha parteira que tantos rebentos já ajudara a trazer ao mundo para alegria de ditosos pais?

Recolheu-se ao seu quarto, numa tentativa de não ser percebida. Willy estava envolto em conduzir para o compartimento seguro do primeiro piso os animais que pastavam nos campos adjacentes.

O vento rugia atônito, vergando pinheiros, quase fazendo com que suas copas beijassem o solo. Estalidos de galhos a romperem-se eram ouvidos na distância. Já não eram assobios do vendaval que precedia a anunciada nevasca. Era um furor indescritível.

Franz correu até onde estavam os cavalos e começou a encilhá-los a fim de prendê-los à carroça e ir em busca dos filhos. Foi difícil abrir o grande portão e sair para fora lutando contra a fúria do vento. Alguns flocos de neve já começavam a cair sobre os cavalos que voavam montanha acima, como que sentindo dentro deles o desespero do dono. À medida que subia a montanha, estreitava-se o caminho e a tempestade aumentava sua fúria.

Mais sentiu do que viu, em uma reentrância, em meio ao monte, — uma reentrância que era usada como abrigo em tempos de chuva —, algo como uma sombra avermelhada. Lembrou-se de haver insistido com os meninos para que sempre usassem roupas com cores berrantes quando fossem escalar a montanha. Ansioso e no desespero, freia, rapidamente, fazendo com que os cavalos quase se desviassem do caminho. Levava consigo badalos e o indispensável corne para se fazer ouvir na distância. Levou-o à boca e o seu som ecoou pelas encostas e pelo vale. Logo ouviu a resposta dos instrumentos de sopro dos meninos.

Conseguiu levar o carro até perto de onde eles se encontravam. Um pedaço do sufoco passara. O problema agora era retornar para casa, na maior velocidade possível, antes que a noite chegasse. Nada conversaram. O barulho ensurdecedor do vento não deixaria mesmo que fossem ouvidos.

Conseguiram chegar a tempo, antes que a tempestade de neve e a noite os engolisse. Frau Ingrid, já preparara para eles uma roupa seca e quentinha para que ficassem bem agasalhados e não corressem o risco de pegar uma doença pulmonar.

O jantar estava preparado e a mesa posta. Uma fumegante sopeira cheia de caldo e generosos pedaços de carne de galinha e o indispensável Cless exalava seu aroma pela cozinha inteira. Todos acomodados em torno da grande mesa, esperando que o pai fizesse a prece de agradecimento pela comida servida e pelo desenlace feliz dos garotos alpinistas que ali se encontravam.

Mas… havia um lugar vago na mesa. Alguém estava faltando. Maria! Onde estaria Maria, que ainda não tinha vindo dar as boas-vindas e abraçar os quase perdidos montanheses?  Frau Ingrid soltou um grito e saiu, em desabalada carreira, à procura da nora. Foi na salinha de costuras, na sala onde faziam outros serviços manuais e nada dela.

Pensou que em seu quarto ela não poderia estar. Maria não fora criada para ficar em repouso enquanto outros corriam a fazer os serviços da casa, enquanto todos aflitos e angustiados estavam à espera dos garotos. Foi até o quarto do jovem casal. Bateu na porta. Silêncio. De novo. Chamou. Ninguém atendia e nem respondia. Forçou a fechadura. Que se abriu com facilidade. Não estava trancada. E então ela viu o desespero à sua frente. O grito que soltou invadiu a casa. Mais que um grito. Era um uivo de fera ensandecida.

Maria estendida no assoalho em meio a um mar vermelho de sangue. Em seu seio um quase inerte bebê, preso ainda, pelo cordão umbilical, ao ventre materno.

Não havia tempo para dar vasão ao desespero. Com um horror nascente, que ela tentava conter, correu para a sala de costura de onde retorna com uma tesoura e um cadarço que na mesa encontrara. Amarrou, com todo o cuidado o grosso cordão umbilical, cortando-o em seguida. O bebê não estava gelado. Ainda! Maria, em sua agonia, sentindo que a vida se esvaía junto com o sangue que, aos borbotões fluía de seu ventre, envolveu o recém nato com uma manta e o acolheu em seus braços. Não estava gélido, mas respirava mal. Sua cor azulada já denunciava o pior. Frau Ingrid, a correr, em desespero, levou-o para perto da grande lareira acesa no salão.

Willy não quis ver o filho. Amaldiçoou-o por ter causado a morte de sua Maria. Enlouquecido, encilhou o primeiro cavalo que encontrou no estábulo e em desabalada carreira saiu, desvairadamente, a cavalgar na escuridão da noite, em meio à tempestade de neve. E nunca mais voltou. Tragado pelas águas do lago lá embaixo? Uma queda em algum dos muitos precipícios que ladeiam os montes?

O pequeno Rolf renasceu. E no seio da grande família foi criado. Ouvia, embevecido, as histórias que o velho Gustav, já um tanto perdido em suas memórias recentes, lhe contava. Com o carinho e os cuidados de todos cresceu em tamanho e vivacidade.

Quando teve altura suficiente para alcançar os instrumentos musicais que ficavam sobre o piano foi para o violino que seus olhos primeiro se fixaram. Puxou-o para perto de si e se não fosse a rapidez de um dos mais velhos teria se esboroado no chão juntamente com o precioso instrumento.

— Quero logo tocar um baile com esta rabeca.

— Não é uma rabeca — explicava-lhe, pacientemente, a vovó Sofie. — É um violino. Foi nele que seu tio Kurt aprendeu a tocar.

Rolf, mesmo sendo ainda tão pequeno, já entendia a história de seu famoso tio violinista.

— Eu vou ser igual ao tio Kurt.

Aprendeu, com os mais velhos, todas as tarefas inerentes a quem vive em uma grande propriedade rural. Mas não se sentia feliz no amaino da terra, na criação do gado leiteiro, no cuidado com as galinhas e os porcos. Sua vida só se completava quando empunhava o arco e com ele começava a tanger as cordas de seu violino. O mestre violinista da aldeia já nada mais tinha a lhe ensinar. Insistiu com a família que o enviasse logo a Innsbruck para aperfeiçoar-se ou mesmo para a Escola de Música de Viena.

Adolescente, ainda, para a capital da Áustria Rolf partiu. Franz, seu avô, levou-o. Matriculou-o na famosa Escola de Música. Que tinha anexo um pensionato onde os estudantes poderiam ficar alojados.

Cedo Rolf percebeu que não queria ficar dependendo do dinheiro da família para continuar seus estudos. Logo procurou aprender um ofício. Tornou-se aprendiz de alfaiate. Sua ânsia em ser um grande violinista poderia esperar até que juntasse os shillings suficientes para pagar seus estudos e manter-se em Viena. Não tardou a ser um mestre artesão. Era o braço direito de seu patrão.

Aos poucos conseguiu retornar aos estudos musicais. Mas o tempo para estudar, aos poucos, tornava-se curto. Ele sabia que para se tornar um virtuose, como fora seu tio Kurt, precisaria treinar em seu violino durante muitas horas ao dia. Não desanimou, porém. Fazia seu trabalho na alfaiataria e nas horas vagas dedicava-se às aulas e ao exaustivo treinamento com seu instrumento.

Certa tarde quando se dirigia para a escola de Música, tropeça na calçada. Sentiu, mais que ouviu um sorriso que não conseguiu identificar se de complacência ou de zombaria. Ao levantar-se e erguer o rosto quase esbarrou em alguém que mais lhe parecia uma fascinação. Uma fada a seu lado a lhe sorrir de corpo inteiro. Os mais alvos dentes que vira em sua vida. Onduladas mechas de cabelo caiam-lhe pelos ombros. E o máximo que poderia acontecer. Levava em suas mãos um estojo que, pelo formato, só poderia conter um violino.

Olharam-se estarrecidos. Sorriram.

Um fascínio que durou uma vida.

(Mais um trecho de um livro em elaboração)

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