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Mulheres que correm com os lobos

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O arquétipo da mulher selvagem

Apesar de abordar o resgate de nossa frutífera ancestralidade, a autora não sugere, como pode parecer no título e subtítulo da obra, que, literalmente, formemos nossa matilha e saiamos correndo floresta adentro. Ela nos motiva a tomarmos o exemplo de vivência dos lobos e, assim, resgatarmos o que sempre esteve em nossas linhagens, muito embora tenha sido forçadamente esquecido devido aos diversos processos de enrijecimento impostos por convenções sociais:

O arquétipo da Mulher Selvagem, bem como tudo o que está por trás dele, é o benfeitor de todas as pintoras, escritoras, escultoras, dançarinas, pensadoras, rezadeiras, de todas as que procuram e as que encontram, pois elas todas se dedicam a inventar, e essa é a principal ocupação da Mulher Selvagem. Como toda arte, ela é visceral, não cerebral. Ela sabe rastrear e correr, convocar e repelir. Ela sabe sentir, disfarçar e amar profundamente. Ela é intuitiva, típica e normativa. Ela é totalmente essencial à saúde mental e espiritual da mulher (PINKOLA ESTÉS, 1999, p.14).

A escritora e psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés faz um estudo aprofundado de diversas narrativas arquetípicas, como os famosos “contos de fadas”, para mostrar que, ao longo dos séculos, o inconsciente coletivo das mulheres foi forjado para limitar a capacidade criativa e instintiva. O termo “arquétipos”, que foi cunhado pelo psicanalista Carl Jung, denomina um conjunto de imagens que é legado pelas narrativas aparentemente inocentes e que direcionam nossa maneira de assimilar as situações. A maioria delas são usadas como controle psicológico e, destarte, social. As que são abordadas na obra analisada, fortalecem a manutenção do patriarcalismo, exceto a que serve como escopo da exegese da autora, isto é, a da mulher selvagem.

Uma personagem arquetípica recorrente nos contos clássicas é a da donzela em perigo, a qual espera ser salva, pois é sempre desprovida da capacidade de tomar decisões e administrar sua vida. E o fato de serem tidas como histórias infantis as torna ainda mais nefastas, na medida em que exercem a função de manipular mentes pueris para se enquadrarem nos contextos misóginos.

Um dos exemplos mais contundentes usados pela escritora para ilustrar a carga significativa dos enredos padronizados, conhecidos como didáticos, é o do “Barba Azul”, aquele que assassinava as esposas que ousassem olhar no quarto proibido. A priori, segue a linha dos demais “contos de fadas”, os quais alertam as garotas para que sigam as regras pré-estabelecidas pelos homens, caso contrário serão punidas, banidas, exiladas, proscritas, devoradas, mortas sem piedade, e assim por diante. E, analisando mais profundamente, ele é o arquétipo da poda da liberdade e, assim, da limitação para a criação artística: “O assassinato cometido pelo “Barba Azul” de todas as suas esposas “curiosas” é o assassinato da criatividade feminina, aquela que tem o potencial para desenvolver todos os tipos de aspectos novos e interessantes” (PINKOLA ESTÉS, 1999, p.44).

Por se tratar de uma obra que é resultado de um estudo denso sobre a condição das mulheres, exige uma leitura acurada, paciente, com intervalos para pesquisa e reflexão. É aconselhado lê-la e relê-la até nos atentarmos para a necessidade de deixarmos florescer nosso instinto criador, na medida em que, conforme a escritora, todas as mulheres têm o estopim criativo dentro de si, o qual, na grande maioria das vezes, é sufocado pela conjuntura de interesse segregador e de manutenção do status quo.

O resultado para o enfraquecimento da “mulher selvagem”, isto é, daquela que usa suas características intrínsecas para produzir arte, são as enfermidades psicossomáticas, como a depressão, a síndrome do pânico, os distúrbios alimentares, o sobrepeso, o envelhecimento precoce, entre várias outras. Esses problemas são agravados pelo nocivo estereótipo da “cuidadora”, ou seja, a ideia imposta de que a mulher é, por natureza, maternal e, por isso, capaz de cuidar de todos, o que parece, a princípio, louvável. No entanto, a sobrecarga emocional e laboral é altamente destrutiva, pois, numa rotina atribulada, é praticamente impossível ter as catarses necessárias para o livre criar, o qual necessita de tempo de hibernação, reflexão, prática e refeita: “A paciência, a paz e o balanço renovam as ideias. Só o ato de entreter uma ideia e a paciência para embalá-la são o que algumas mulheres poderiam chamar de grande prazer. A Mulher Selvagem o considera uma necessidade” (PINKOLA ESTÉS, 1999, p.246).

Muito antes da publicação de “Mulheres que correm com os lobos”, Karl Marx já havia evidenciado que todos os humanos nascem artistas, isto é, capazes de criar. No entanto, o sistema em que estão inseridos arranca, da grande maioria, o tempo necessário para desenvolver a criatividade e, com ela, produzir arte e descobertas, porque, tendo cargas exaustivas de trabalho que esgotam as energias, é inviável a pesquisa e a contemplação e, por conseguinte, a criação.

  A escritora, por sua vez, centra o tema na condição das mulheres e desenvolve uma tese que se converte num ícone do Feminismo porque não apenas levanta hipóteses, ou tece reclamações sobre a maneira que somos subjugadas, mas também sugere atos que podem transpor essa condição de fazer parte de uma sociedade doentia cuja dinâmica ceifa, não raras vezes, nossa capacidade criativa.  A leitura é obrigatória para conhecer essa proposta e, assim como Clarissa Pinkola Estés, idealizar, e quiçá concretizar, um mundo sem a repressão ou a domesticação de nosso arquétipo mais poderoso.

(PINKOLA ESTÉS, Clarissa. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999).

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