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Lázaro, a expressão do “ser” brasileiro

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Lázaro e os fundamentos do ethos societário constitutivo do (B)brasil

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Sandro Luiz Bazzanella*

Luiz Eduardo Cani**

O que Lázaro nos diz sobre o “Brasil”? O que Lázaro nos diz sobre o “brasil”? Lázaro, que não pode mais falar em seu silêncio eterno nos diz muita coisa sobre dos dois “brasis”. Lázaro é a encarnação do ethos da violência sobre a qual se constitui o tecido social brasileiro. Lázaro é a expressão do “ser” brasileiro. Da imensa maioria de brasileiros espalhados pelo imenso território nacional. Muitos esquecidos nos confins do cerrado, da caatinga, da floresta amazônica, ou da mata atlântica, ou mesmo do que sobrou destes biomas diante da voracidade do latifúndio, do “agro” que é “pop” e, com dia a letra da música “o pop não poupa ninguém”[i]. Muitos destes brasileiros apinhados, amontoados nas periferias das cidades, saltando por sobre as valas de esgoto que correm a céu aberto, sobrevivendo no interior de seus barracos construídos com restos de madeira, papelão, lonas plásticas. Muitos destes brasileiros desempregados, subempregados, desalentados, lançados na insegurança alimentar, no analfabetismo mais que funcional. Corpos a serem explorados diuturnamente e, por fim descartados como refugos humanos. Corpos a serem violentados pela ação das forças repressivas do Estado, pelas milícias urbanas, pelos capangas rurais.

Lázaro e a violência se confundem. É difícil distingui-los. Formam um par indissolúvel. Sua companheira de berço (se é que teve um berço), a violência, o fez vir a um mundo que desde seus primeiros instantes o rejeitou. Porém, a pobreza, a miséria material e humana em que foi lançado não foi suficiente para demovê-lo da vontade de viver. Insistente persistiu na vida. Amaldiçoado pela vida foi condenado a viver acorrentado à violência e, ao mesmo tempo, exposto a essa. Lázaro é expressão da violência que se abateu sobre os povos indígenas pelo colonizador a procura de ouro, de prata, de pau-brasil. Lázaro é a expressão da violência do trabalho escravo ao longo de 320 anos em que africanos foram usados, acorrentados, maltratados e mortos nas minas, nos canaviais, no café.  Lázaro é a expressão da violência dos escravos alforriados em 13 de maio de 1888, abandonados a própria sorte. Lázaro é a expressão da violência do capitão do mato, do bandeirante, do capataz, do matador de aluguel, mas, também do marechal, do major, do coronel ustra, do capitão, do sargento, do cabo, do torturador.

Lázaro, filho da violência, era um “Homo sacer”[ii]. Uma vida nua destituída de direitos. Condenado pela lei do direito foi expulso da cidade. A condição de cidadão não lhe pertencia. Condenado pela opinião pública escondia-se e era escondido pelos clientes para quem prestava serviços. Sua condição era ambígua: Não era um animal, mas também não era um humano. Poderia ser morto por qualquer outro ser humano sem que este tivesse que justificar sua ação. Tudo indica que a morte de Lázaro não foi uma “Morte”, mas queima de arquivo.  Lázaro não foi morto; foi “espetacularmente” executado. A violência da execução de Lázaro manifesta-se nos 125 projéteis disparados pelas forças policiais que o “caçavam” durante dias. Não havia alternativa. As forças repressivas do Estado tinham que dar uma resposta contundente à opinião pública, aos gritos, aos xingamentos das multidões, a partir da caricata personificação do mal, da barbárie, do banditismo de Lázaro e, da inofensiva condição da população exposta a suas insanidades comercializadas diuturnamente pelos meios de comunicação.  

A violência da execução de Lázaro se manifesta na força desproporcional do Estado contra um indivíduo proscrito. Contra um refugo humano, produto de um tecido social historicamente desigual e violento. Contra “um” de milhões de brasileiros pardos deixados a margem do acesso a uma vida minimamente digna. Contra “um” de milhões de afrodescendentes acusados cotidianamente de roubo, de malandragem, de preguiça. Contra “um” de milhões de trabalhadores submetidos a baixos salários e, por extensão a precariedade de vida de sua família. Contra “um” de milhões de mulheres violentadas pelos baixos salários, pelo assédio sexual, moral, pela violência do estupro, do feminicídio.

O fato mais curioso em torno dessa “caça ao bandido”, e talvez o menos percebido, é a incapacidade das forças policiais para efetuar a prisão de Lázaro. Foram necessários mais de 200 policiais que atuaram ininterruptamente por 20 dias perseguindo-o para, ao final, exterminá-lo com uma saraivada de tiros. É como se todo o esforço tivesse servido apenas para provar que a observância aos direitos fundamentais é um custo que, além de alto, é desnecessário, pois o fim é inevitavelmente o mesmo (a morte do perseguido em troca de tiros com a polícia). Nessa demonstração do destino inequívoco de todos os “bandidos” reside mais uma violência: a negativa de todas as prerrogativas da cidadania (no sentido contemporâneo do termo). Trata-se de um case, no melhor estilo do gosto dos neoliberais, a ser estudado e implantado para a elaboração de políticas de segurança pública orientadas à eficiência da atividade policial.

Não por acaso, poucos dias depois passou a ser reproduzida em condições diversas a mesma situação, inclusive em regiões nas quais os “autos de resistência” não são tão comuns[iii] – o que não indica, por si só, que pessoas não são exterminadas pela polícia, mas apenas que tais casos não são publicizados. Dito de outro modo, Lázaro foi a “prova viva (ou morta???)” de que o duplo risco da perseguição (de gastos desnecessários e de possíveis vitimizações entre os policiais) já não é mais aceito na atividade policial – assim como os drones substituem os soldados nas guerras e, com isso, passam a implicar inúmeros rearranjos teóricos para justificar o engodo do risco psíquico para os pilotos de drone, que teria substituído o risco físico para os soldados[iv].

Lázaro é a expressão da violência em sua multiplicidade de formas a partir da qual se constituiu e se mantém constituído o tecido social brasileiro. A execução de Lázaro (salvaguardadas as especificidades de cada um destes seres humanos, violentados, mortos, massacrados em determinados contextos sociais, políticos e temporais), o massacre da favela do jacarezinho, o assassinato de Mariele, o massacre do Carandiru, o massacre de Eldorado do Carajás, a chacina da Candelária, o assassinato de Chico Mendes, o assassinato da irmã Dorothy, as mortes nos porões da ditadura militar, os torturados da ditadura militar, o massacre de Guerra de Canudos, o massacre da Guerra do Contestado… 

A violência é a condição que assiste a imensa maioria dos brasileiros que nasceram, nascem e nascerão no “brasil”.  Os brasileiros que controlam o “Brasil” têm no braço coercitivo do Estado a garantia da continuidade do controle social.  Os brasileiros que controlam o “Brasil” têm em parte significativa do poder judiciário a garantia de seus “direitos”, mesmos que estes sejam usurpados do sangue, do suor e da vida dos brasileiros que vivem no amaldiçoado “brasil”. Os brasileiros que controlam o “Brasil” têm no poder econômico, no “nome que vem do berço” o “direito natural” de domínio sobre o “brasil”, da multidão de párias, de refugos humanos a seu dispor.

Enquanto, o “brasil” não compreender o fundamento ontológico sobre o qual reside sua forma de ser “homo sacer”, vida nua, descartável, matável, desprezável, o “Brasil” continuará manifestando-se a partir das mais variadas formas de violência, sejam elas simbólicas, sejam elas reais, grotescas, estúpidas, embrutecidas. Enquanto os brasileiros habitantes do “brasil” não compreenderem de forma suficiente o modus operandi dos brasileiros do “Brasil”, promoverão entre si as mais bárbaras formas de violência consumindo suas vidas, de suas esposas, de seus filhos, de suas filhas, de suas crianças numa espécie de espetáculo infernal de contínua dor e sofrimento.  Talvez Lázaro nos ajude a compreender a necessidade de paralisarmos a máquina “Brasil” de produção de violência, de morte gratuita, brutal, espetacularizada dos brasileiros que “sobrevivem” no inferno do ‘’brasil”.



Sandro Luiz Bazzanella é professor de Filosofia

Luiz Eduardo Cani é professor de Direito


[i] A passagem encontra-se na letra da música: “O Papa é pop” de autoria do grupo de rock: “Engenheiros do Havaii”

[ii] O filósofo e jurista italiano Giorgio Agamben (1942) em suas investigações arqueológicas e genealógicas na constituição de uma perspectiva paradigmática a partir do qual se possa compreender os paradoxos e as contradições da máquina jurídica, política e econômica contemporânea encontra no “homo sacer” tal condição. Assim, o homo sacer é uma figura do direito romano arcaico que resulta da condenação por atos  contra outrem, contra a Civitas, ou que desestabilizam sua ordem.  Sua condenação implicava na perda dos direitos de pertencimento a Civitas. Era abandonado a sua própria condição de sobrevivente. Já não era mais humano, pois não compartilhava o espaço público, mas também não era um animal, era uma mera vida, uma vida nua e, como tal destituída de direitos.  A via nua do homo sacer era uma vida sacralizada, pertencente aos deuses, já não pertencia mais a Civitas, ao mundo dos humanos. Sob tais condições qualquer indivíduo qe por motivo qualquer matasse o homo sacer não responderia por crime, não lhe seria imputado culpabilidade, pois apenas matara uma vida nua, desprovida de sentido, de significado, de justificativa no contexto do mundo humano.

[iii] Por exemplo: https://ndmais.com.br/seguranca/policia/tres-homens-morrem-apos-perseguicao-e-troca-de-tiros-com-a-pm-em-blumenau/

[iv] Vide: CHAMAYOU, Grégoire. Teoria do drone. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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