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Jogando xadrez com os anjos

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As crianças no pós-guerra

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É de senso comum a informação de que as guerras são devastadoras. As estatísticas revelam a quantidade de mortos, e as notícias evidenciam as destruições materiais que levam décadas para serem reconstruídas. No entanto, há muito mais consequências que não são tão cediças, como o futuro das crianças envolvidas, direta ou indiretamente, num conflito bélico como a Segunda Guerra Mundial. É isso que vemos na narrativa “Jogando xadrez com os anjos”, de Fabiane Ribeiro.

A protagonista Anny não tem a menor noção da conjuntura na qual está inserida, uma vez que é uma pequena infante que reside numa Inglaterra devastada no pós-guerra e cujos pais prestam serviços desonestos, a saber:

Eles acabaram se especializando em casos de mulheres tidas como “traidoras” em algum momento da Grande Guerra. Na verdade, não ficavam sabendo os motivos exatos. O chefe disponibilizava os dados sobre a pessoa e a punição requisitada, então o casal pesquisava e espionava o máximo possível para que não houvesse falhas na execução e partia para realizar o serviço (RIBEIRO, 2013, p.291).

Pelo fato de viajarem cotidianamente para executar as tarefas nefastas, deixam a menina aos cuidados de uma vizinha que, embora seja muito bem paga e admoestada para cuidar da criança, a maltrata, escraviza, espanca e até a interna em um manicômio.

A escritora nos direciona a refletir sobre o fato de que esse destino incerto e inóspito foi a realidade de muitas crianças do período das guerras, entre-guerras e pós-guerra. Pois muitos pais foram mortos no conflito, ou perseguidos, ou, de alguma maneira, se perderam de seus filhos sem poder reencontrá-los, ou, como os de Anny, prestavam serviços ameaçadores e, assim, se apartavam de sua prole. Muitos infantes foram recebidos, indiscriminadamente, em manicômios, onde se misturavam aos demais internos:

A maioria das crianças daqui é órfã, bastarda, indesejada ou mesmo vítima. As vítimas são as piores, porque são crianças que sofreram algum trauma, agressão ou perda, e passaram a apresentar distúrbios no comportamento, ao ponto de serem trazidas para cá. A situação agravou-se ainda mais após a Guerra. Nunca houve tantas crianças em manicômios pela Europa como agora (RIBEIRO, 2013, p.255).

Quando Anny, por maldade de sua preceptora, é enviada a um hospício sem nem mesmo saber o que essa palavra significa, tem sua percepção acerca desse ambiente hostil e das consequências de nele ser trancafiada:

Eram fileiras de pessoas vestidas de cinza. Aqueles uniformes fundiam-se ao cinza das paredes, fazendo com que os internos parecessem parte do lugar, como se fossem o prédio em si. Era como se, ao entrarem naquele local, deixassem de existir para o mundo, perdessem suas identidades e acabassem por se fundir às paredes frias e cinza... Sem vida (RIBEIRO, 2013, p.253).

Quando conversa com um menino que está há tempos no manicômio e que voltara de um castigo porque tentara fugir, ele lhe relata: “- Banhos frios, choques, remédios que a fazem dormir por muito tempo. Ou também podem trancá-la num quarto escuro, sem água e comida por alguns dias. No meu caso, desta vez, foi a cadeira girante. Eles colocam você lá até que perca a consciência” (RIBEIRO, 2013, p.258).

Além disso, o enredo nos mostra outras personagens secundárias que também tiveram suas vidas maleficamente afetadas pelo conflito. Traumas diversos que, embora não contabilizados nos números que mostram as baixas, corroeram a convivência de gerações, como é o caso do casal de idosos com quem Anny vive, ou os amigos que fez durante o período que lá esteve. Sonhos ceifados, cônjuges separados, irmãos que nunca voltaram a se unir, e assim por diante.

Anny, que perpassa todo o enredo sem tomar conhecimento do que fora a Segunda Guerra Mundial, bem como da participação de seus pais, sofre suas consequências de forma avassaladora: perdeu a convivência com os familiares, foi proibida de frequentar escolas ou conviver socialmente, fora obrigada a morar com estranhos que lhe são indiferentes, entre outros fatos supramencionados. E, de maneira semelhante, esse foi o destino de diversas crianças.

No entanto, apesar de todo horror descrito, a narrativa nos traz esperança a partir de uma perspectiva pueril, na medida em que a protagonista, a despeito de todo sofrimento, é bondosa, perseverante e nunca perde sua inocência e ingenuidade. Ademais, é sábia e tem uma habilidade de convivência social altamente desenvolvida. Ou seja, como descreveu o médico que a atendeu porque ela levara uma surra de sua tutora que lhe deixara hematomas: “Nunca conheci uma pequena que fosse tão grande” (RIBEIRO, 2013, p. 183).

Outra característica da inabalável e sensível Anny é que, sabiamente, usa a arte, e o xadrez, como alternativa para amenizar seu sofrimento: “O que a confortava era saber que a arte sempre fizera parte de seu ser e seria assim para sempre. Os caminhos que a levariam para a realização de sua missão junto à dança e à arte estavam nas mãos engenhosas do destino” (RIBEIRO, 2013, p.356). Sua imaginação, criando um mundo paralelo ao cruento em que estava inserida, a fortaleceram para ultrapassar as inúmeras dificuldades.

O leitor deve estar se perguntando sobre o título da obra, isto é, o significado de se jogar xadrez com os anjos. E aqui fica meu convite à leitura, e, como aprendi com a personagem Anny, instiguem a imaginação, façam deduções e as comprovem se embrenhando nessa triste e, entrementes, linda e esperançosa narrativa!

(RIBEIRO, Fabiane. Jogando xadrez com os anjos. São Paulo: Universo dos Livros, 2013).

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