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Iracema

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A invasão da América

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Um dos conteúdos do segundo ano do Ensino Médio é a contextualização do Romantismo Brasileiro e, logo, a leitura e análise de algumas obras desse período. Por isso, estava carregando um exemplar de “Iracema”, de José de Alencar. Ao entrar numa turma de terceiro ano, um aluno, que lera a narrativa no ano anterior, exclamou em tom de brincadeira: “A professora sabe que a palavra “Iracema” é um anagrama para “América”? E gargalhou sarcasticamente, uma vez que adquirira a informação de ser esse um dos fatores mais comentados nos livros didáticos e em todas as aulas introdutórias sobre o assunto.

Muito embora fosse uma provocação pueril que, a princípio, me fez rir, também me levou a refletir profundamente sobre essa obra, sobre o movimento romântico e seu contexto histórico. Mesmo que “Iracema=América” é um clichê, me pergunto: será que os leitores dessa obra sabem o que realmente significa a idealizada índia, que é bela, pura e ingênua, ser deflorada pelo europeu Martin?

Sempre considerei José de Alencar um escritor pouco criativo que apenas seguia a tendência de sua conjuntura, isto é, resgatar um ícone nacionalista, escrevendo, dessa forma, narrativas estereotipadas, lineares e preconceituosas. Pois seus personagens da primeira fase do Romantismo são maniqueístas, isto é, previsíveis, na medida em que mudam-se os cenários e os nomes, mas o enredo é sempre o mesmo, a saber: um/uma selvagem que é domesticado/a por uma mulher branca/homem branco bondosa/bondoso.

No entanto, se analisarmos densamente o livro, percebemos sementes do Realismo traduzidas numa sutil crítica à nossa brutal condição de colonizados. Assim como Iracema, toda a América foi iludida pelo branco europeu, que, com trejeitos polidos, vilipendiou nossa beleza, saqueou nossa inocência e nossas riquezas.

A grande maioria dos manuais didáticos e de exegeses acerca do período, ao se referir à Iracema, advertem para o fato da protagonista ser idealizada pelo autor, como vemos na seguinte descrição:

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo de jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto (ALENCAR, 2018, p.12).

Uma vez que um dos ideais do Romantismo era o resgate de um passado heroico, e na falta de cavaleiros medievais autóctones, apelou-se para o estereótipo do indígena. Na tentativa de afirmação patriótica, os escritores desse movimento literário exageram na exuberância das qualidades de suas personagens, tornando-as, dessa forma, inverossímeis. Esse é um dos motivos porque essa Escola Literária é duramente criticada, e porque suas obras são objeto de diversas análises que admoestam em relação à percepção distorcida da conjuntura do Brasil colônia, ou recém emancipado da metrópole europeia, não obstante altamente dependente, sobretudo nos parâmetros culturais.

Além disso, outra vertente das produções europeias, e que está presente nas obras de José de Alencar, é o destino norteando os acontecimentos, ou seja, a ideia de que as almas gêmeas se encontrarão e que suas vidas estavam pré-determinadas, como vemos a seguir: “A boca do estrangeiro pousou na boca mimosa da virgem. Ficaram ambas assim unidas como dois frutos gêmeos do araçá, que saíram do seio da mesma flor” (ALENCAR, 2018, p.30).

Apesar de todas as características romantizadas, se levarmos em consideração a descrição da paisagem, acredito que o autor não foi propriamente um idealista na medida em que nossa natureza é, de fato, absurdamente exuberante. Assim, mais uma vez ele se mostra precursor do Realismo, isto é, retratando os lugares como eles são. No caso do território brasileiro, a fauna e a flora, de tão belas, chegam a ser inefáveis como os sentimentos puros:

Quando tu passas no tabuleiro, teus olhos fogem do fruto do jenipapo e buscam a flor do espinheiro; a fruta é saborosa, mas tem a cor dos tabajaras; a flor tem a alvura das faces da virgem branca. Se cantam as aves, teu ouvido não gosta já de escutar o canto mavioso da graúna; mas tua alma se abre para o grito do japim, porque ele tem as penas douradas como os cabelos daquela que tu amas! (ALENCAR, 2018, p.76).

Outro condição que justifica minha premissa de Iracema conter traços realistas é que o autor mostra a misoginia fortemente presente naquele entrementes, como é visível em: “A sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro à vingança de Irapuã. Vil é o guerreiro que se deixa proteger por uma mulher” (ALENCAR, 2018, p.25). Ou seja, Martim é considerado inferior caso peça abrigo à Iracema, demonstrando a ideologia patriarcal, na qual somente o homem pode proteger a mulher, nunca o contrário.

Para constatar a crítica social e histórica subentendida, para ver os traços incipientes do Realismo, para acompanhar uma história de amor avassaladora, ou para se envaidecer com as descrições da magnífica paisagem brasileira, a leitura de Iracema deve ser um dos itens inegociáveis de nossa lista de “coisas para fazer antes de morrer”! E, assim, se assegurar de que a obra vai muito além da famigerada informação de ser um anagrama para América.

ALENCAR, José. Iracema. 2 ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2018.

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