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abril

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George e sua arte em ferro

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Sua persistência levou-o a conseguir o ponto desejado

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Feliz porque conseguira um trabalho, um local onde dormir e fazer suas refeições, George despediu-se do senhor Oliver e dirigiu-se aos fundos da oficina. Pendurou suas roupas nos pregos que encontrou na parede e recolheu-se ao improvisado catre onde passaria as próximas noites até conseguir o montante para realizar seus sonhos.

— Talvez um ano ou um pouco mais. — Pensava, entre bocejos, até fechar os olhos e dormir profundamente.

No dia seguinte, bem cedinho, colocou as ferramentas em ordem. Verificou o estado do carvão há tanto já ali guardado. Por um longo tempo ficou a manobrar o pesado pedal a fim de que as labaredas tomassem as mais claras tonalidades possíveis e o ferro pudesse ser moldado. Em sua memória, as instruções do senhor Aindreas, seu velho mestre serralheiro:

— Quanto mais clara a chama, mais alta a temperatura.

A lado da fornalha, o tanque, a bigorna e dois pesados martelos de ferro.

De início fora difícil encontrar a temperatura ideal. Ferramentaria e aparelhos já emperrados pela falta de uso. Sua persistência levou-o a conseguir o ponto desejado.

Outro problema era a tão necessária água na qual deveria mergulhar, de imediato, a haste de ferro incandescente. Situava-se o poço a uma distância razoável da oficina. Havia um tipo de aqueduto por onde a água escorria até um tanque ao lado da fornalha. George demorou mais um dia para colocá-lo no nível correto desde a saída. Ao lado, uma velha bomba hidráulica, do tipo alternativo —uma invenção recente—, que, claro, também não funcionava. O cano de ferro mergulhado no poço estava já um tanto carcomido. George conseguiu, com persistência, retirar os parafusos e puxá-lo para fora. Horas infindáveis para expelir a corrosão interna e externa. Finalmente conseguiu bombear a água com a alavanca manual e fazê-la jorrar. A princípio, uma água ferruginosa. Algum tempo depois um cristalino líquido começou a verter. Acoplou-a ao aqueduto, devidamente colocado em sentido descendente. A sorrir observou encher-se o tanque ao lado da fornalha.

Poderia agora dar início a seus trabalhos. Papel, lápis de várias cores, tinteiro, caneta e várias penas já faziam parte de sua pequena mochila. Desenhou vários modelos de placas. Que neles baseadas seriam moldadas em ferro forjado. A intenção do artista é que elas fossem colocadas em sentido perpendicular à parede frontal da taberna, a fim de que, de longa distância, chamassem a atenção. O senhor Oliver não se decidia. Achava tudo magnífico. George mesmo foi quem escolheu por ele. Duas barras horizontais. Entre elas alternou folhas de parreira e cereais com cachos de uva e hastes de trigo e cevada a enfeitar o nome do estabelecimento.  Na ponta dois grandes canecos. Um, a jorrar um líquido da cor do ouro e outro, da cor do vinho. Ambos reluziam aos raios do sol que por eles incidiam em todas as horas do dia. E à noite, à luz de um lampião.

Foi uma festa a inauguração da reluzente e artística placa. Oliver nunca vendera tanto vinho, tanto uísque e tanta cerveja em sua taberna como naquele dia. Sua mulher não cessava de assar broinhas de milho e suculentas fatias de rosbife.

Proprietários de casas de comercio e estalajadeiros da aldeia entusiasmaram-se com a arte de George que trabalhava enquanto havia luz do dia a fim de dar conta de tantas encomendas.

Logo as estalagens e tabernas das estradas e aldeias circunvizinhas ostentavam a arte de George em suas portas. Oliver nunca vira tantas libras esterlinas forrarem seu cofre. Tanto pelo serviço prestado pelo artista do ferro forjado como pela freguesia que acorria em sua taberna para comer e beber.

Mais de um ano já decorrera desde que George se instalara na pequena aldeia não tão distante de Liverpool. Nunca imaginara que ficaria tanto tempo por ali. Moldara em ferro janelas e gradis, floreiras e portais de todas as casas. O portal do velho cemitério, encomendado pelo pastor da única igreja do condado, foi a obra prima de George. Toda a comunidade contribuiu para que fosse solenemente instalado. Até a cruz no ápice da torre foi substituída por outra que agora era o orgulho da aldeia.

Chegou o dia de ir embora. George disse ao senhor Oliver que nada mais restava para realizar tanto na aldeia como na região. Quando mencionou que precisavam acertar as contas, recebeu como resposta apenas um papel com uma longa lista do que gastara morando e comendo, além do preço de todo o material utilizado. Outro com o valor que cada freguês havia pago.

George tentou retrucar, explicar-lhe que o contrato verbal seria a de pagar apenas pela alimentação. A receita era bruta, em verdade, mas seria a metade para cada um.

— Você chegou aqui cansado e faminto. Eu o acolhi como a um filho e lhe dei trabalho. Você está famoso agora em toda a região graças à minha bondade. — E atirou-lhe umas míseras libras e alguns pence.

George juntou seus pertences, colocou sua mochila nas costas e saiu pela estrada em sentido contrário a Liverpool. Não havia razão de ir até lá, afim de embarcar em um navio rumo a América, como sonhara. Passou pela frente da Igreja. O pároco à porta, acenou para ele. De cabeça baixa, costas encurvadas, continuou seu caminho com a angústia corroendo suas entranhas. Não fora criado desta maneira. Onde vivera a palavra de um homem era sagrada. Não ousou responder ao senhor Oliver. Era um artesão, um homem do povo, simples, mas fora criado no castelo de um lorde, no castelo do Conde de Sworth e assim comportar-se-ia, em homenagem a seu pai que morrera pela libertação da Irlanda. Não mancharia seu nome altercando-se com um mero taberneiro, mesmo perdendo um ano de seu serviço.

Andando pela estrada, a sós com seus pensamentos, ruminando o preço pago por seu trabalho —que ele sabia ser de grande valor— de longe vislumbrou a placa de uma taberna. Claro, a deslumbrante placa, reluzente ao sol, artesanalmente elaborada por ele. Entrou. O taberneiro não o conhecia. Sentou-se em um tamborete, ao lado do balcão, e pediu um uísque. Nunca havia sequer experimentado uma bebida alcoólica em sua vida.

— O moço vem de longe, não é mesmo? — Foi puxando conversa o estalajadeiro. E outras perguntas mais foi fazendo. George só respondia por monossílabos. — Mas o que foi mesmo que fez o moço entrar em minha humilde taberna?

— Pois foi esta placa na porta que de longe vi reluzir ao sol. — Animou-se a responder o rapaz depois de uns goles de uísque.

— Pois é. Paguei uma fortuna por ela há quase um ano. Mas desde então ela tem atraído uma grande freguesia que antes só passava em frente e não entrava. Paguei vinte e cinco libras por ela. Mas compensou. Pedi ao Oliver um desconto, já que somos velhos conhecidos. Ele até me falou que por ele, até dava para baixar o preço, mas o moço que a fez não baixava um penny sequer.

— Como é mesmo o seu nome?

— Harry Sidney Fitzburger. Por que quer saber?

— Nada não, senhor Harry Sidney. —E puxou da algibeira o papel que Oliver lhe dera. Nele a data, o nome completo do taberneiro tal qual acabara de ouvir e o valor recebido. Apenas 2 libras. E assim deveria ter sido com todos os demais.

George nada mais falou. Apenas foi se encharcando de uísque até seu corpo cair do tamborete.

O taberneiro não sabia o que fazer. Um rapaz tão jovem e caído ao chão com tão pouco uísque. Nisto viu a charrete do pároco passando em frente. Correu até ele a fim de pedir socorro. Ajudou-o a colocar o jovem descordado no carro. Levaram-no até a casa paroquial que ficava atrás da igreja.

O pastor pediu para a esposa que fizesse um chá bem forte. Mas George nada engolia. Acordou no dia seguinte com uma dor de cabeça como se milhões de sinos soassem dentro dela. Os vômitos não cessavam. O casal, aflito, imaginava o pior. No correr das horas o rapaz conseguiu engolir o chá, às colheradas. Alucinações em sua cabeça. Até que, finalmente, conseguiu dormir placidamente. Ao acordar não sabia onde estava e nem o que havia acontecido. Só as suas desventuras martelavam em sua cabeça.

O clérigo sentou-se a seu lado e tentava consolá-lo.

— Meu filho, tem tanta moça bonita no mundo. Não precisa tomar uma carraspana dessas só por causa de uma…

— Não, senhor pastor, não é nada disto. Nunca tive uma namorada, ainda, na vida.

Nisto viu a floreira pendente na janela sobre o jardim e a reconheceu. Sabia que além dela, o portal do cemitério, a cruz no topo da torre e outras obras mais que enfeitavam o entorno da Igreja e da casa paroquial foram pagas com dinheiro arrecadado pela comunidade. Fizera um preço ínfimo apenas para cobrir os custos.

— Ah! Meu filho! Você está admirando esta obra de arte? Você não imagina o quanto tivemos de arrecadar para pagar o preço que o artista que trabalha para o senhor Oliver pediu. Ele até queria fazer um preço mais baixo mas o moço não aceitou.

Nesta altura George não aguentou mais. Caiu num pranto incoercível e esqueceu-se das boas e ternas palavras que sempre usava.

— Aquele canalha do Oliver que nem de senhor eu chamarei mais. Trabalhei de escravo para ele durante mais de um ano para receber míseras cinco libras e alguns pence.

Puxou da algibeira o papel que recebera do seu falso ex-sócio e mostrou-o ao pároco. O assombro tomou conta dele e de sua mulher.

No domingo seguinte, em sua fala para o povo da aldeia, contou toda a história de George e para provar a infâmia de Oliver fez correr de mão em mão o abominável papel que dele George recebera. Foi difícil acalmar os ânimos dos paroquianos.

(Mais um trecho de um livro em elaboração.)

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