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Erico Verissimo: panorama histórico

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Meu patrono na Academia de Letras

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No dia dois de setembro de dois mil e vinte e dois, ingressei como imortal na cadeira 20 da Academia de Letras do Brasil/Canoinhas, optando pelo patrono Erico Verissimo, fazendo uma escolha que não é fortuita, mas intrínseca à minha formação como leitora, pesquisadora e professora. Já o considerava meu patrono desde o primeiro contato que tive com suas obras.

Desde a tenra infância, sou fascinada por livros e literatura. Mas foi aos quinze anos, ao ler, pela primeira vez, o primeiro tomo de O Tempo e o Vento, denominado O Continente, que tracei minha trajetória acadêmica e profissional. Logo, me embrenhei a ler todas as longas narrativas da vasta produção literária desse autor, e, ainda adolescente, estava certa de que cursaria Letras, pois, assim como ele, desejaria dedicar minha vida aos livros.

Erico nasceu, em 1905, em Cruz Alta, já com o destino prévio de seguir no ramo farmacêutico. Porém, na infância se encantou com a Literatura, sendo um grande leitor de clássicos e outros gêneros. Quando começou a trabalhar no negócio da família, logo demonstrou inaptidão para as tarefas técnicas. Então, muda-se para a capital gaúcha e começa a trabalhar na editora Globo, traduzindo, editando e elaborando capas de livros. Entrementes a essas atividades, escrevia seu primeiro livro. Foi um dos poucos escritores brasileiros que dedicou-se inteiramente a escrever e viveu da venda de suas obras.

Entre tantos outros escritores que li, por que Erico Verissimo me fascina ao ponto de residir em Canoinhas e cursar mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – percorrendo, semanalmente, durante anos, 1.200 quilômetros para estudar sua obra e sobre ela escrever?

De início, foram as personagens e o enredo épico de O Tempo e o Vento, sobretudo a narrativa histórica, que abarca quase dois séculos da história do Rio Grande do Sul e do Brasil. Sempre afirmo para meus amigos e alunos: quer conhecer a História de nosso país? Leia Erico Verissimo e Jorge Amado. Fiquei admirada com as façanhas da família Terra-Cambará, com as guerras, com as incipientes cidades, e, nos últimos tomos, com a descrição dos primeiros anos de República, sobre a Era Vargas, sobre a imigração, e assim por diante. Então, fui buscar mais informações acerca da história desse estado, e descobri uma linha de pesquisa na UFRGS que se chama Literatura e História, na qual os pesquisadores podem abordar as obras de Erico. Pois é isso que a Literatura faz: amplia nossas lentes, nos instiga a pesquisar, a conhecer, a também escrever. Já na minha época de Ensino Médio, objetivava ingressar nessa universidade.

Depois, ao longo das inúmeras leituras que fiz de suas obras, percebi que havia muito mais que romances de formação, pois a temática das mulheres, por exemplo, perpassa toda a produção literária do escritor. Numa tradição misógina, que se escancara mesmo na Arte, Erico, já em seu primeiro romance, tem uma menina como protagonista, a “Clarissa”, demonstrando que se destacava dos demais escritores, quebrando paradigmas. Esse primeiro romance já fez, de imediato, sucesso em países lusófonos, como Portugal e Cabo Verde. E em muitas outras narrativas temos mulheres complexas, fortes, altaneiras, sábias, que mudam o fluxo dos enredos, como Ana Terra, Bibiana Cambará, Valéria, Fernanda, Flora Quadros, Luzia Cambará, Sílvia, e assim por diante. Há, por exemplo, um refrão repetido ao longo da trilogia “as mulheres também estão na guerra”. Ou seja, à frente de seu tempo, quando ainda não se falava em diferenças de gênero, Erico Verissimo já deixava explícito que a História não se fez e não se faz apenas pelos homens ou por aqueles que mais tiveram notoriedade.

Além disso, temos também como leitmotiv da produção do autor, os romances citadinos, como Caminhas Cruzados, Música ao longe, Um lugar ao Sol, Olhai os lírios do campo, O Resto é silêncio e Noite, narrativas que evidenciam os problemas humanos em meio à metrópole em formação. Com Caminhos cruzados, também iniciou uma nova tradição literária no Brasil, a técnica do contraponto, ou seja, descrever a vida como ela é num instante único do tempo, multiplicada por todos que a vivem, cada um a seu modo, se engrenando com o que veio antes e o que virá depois. Noite é uma novela introspectiva sobre a amnésia provocada por trauma psicológico, cujo protagonista vaga, desmemoriado, por Porto Alegre.

Saga, por sua vez, é uma narrativa atípica na cronologia que o autor vinha seguindo, e foi duramente criticada na época de sua publicação, embora extremamente necessária. Eram tempos sombrios, findara a Primeira Guerra Mundial e, pouco tempo depois, Francisco Franco, na Espanha, fazia aliança nazista e entregava Guernica para ser bombardeada. Iniciava, dessa maneira, a Guerra Civil Espanhola, uma prévia da carnificina que seria a Segunda Grande Guerra. Muitos soldados voluntários, de diversas partes do mundo, inclusive oriundos do Rio Grande do Sul, foram lutar ao lado dos republicanos, na tentativa de impedir que se instaurasse uma ditadura nesse país. Erico era ciente dessa conjuntura e, tendo recebido o diário de um dos combatentes, elaborou um enredo fictício a partir desses acontecimentos.

Quando iniciei meu curso de Mestrado na UFRGS, fazendo o levantamento da crítica literária acerca do autor e da produção acadêmica sobre suas obras, estranhei o fato de quase não haver estudos aprofundados sobre Saga. Dessa forma, havia delimitado meu objeto de dissertação! Abordei a dialética do esquecimento e traumas provenientes dos conflitos bélicos, como as vidas pessoais são afetadas e se imbricam aos acontecimentos históricos. Além de contradizer os críticos literários que teimavam em afirmar que é um romance mal escrito. Obtive sucesso nesse projeto inédito. Erico Verissimo, em Saga e tantos outros enredos, se mostra contrário ao Fascismo, levando o leitor a pensar e repensar as práticas ditatoriais e os atos de violência.

Entrementes às publicações de obras que abordam temáticas tão complexas, Erico também publicou livros que são classificados como Literatura Infantil, mostrando sua versatilidade, sensibilidade e uma doçura incomparável. É um encanto ler, por exemplo, O Urso com música na barriga; As aventuras do avião vermelho, Rosa Maria no castelo encantado, entre outros.

Com a dedicação integral à literatura, sendo campeão de vendas com Olhai os lírios do campo, e a tradução de alguns enredos para diversos idiomas, foi ganhando notoriedade, mormente no cenário internacional. Em 1943, foi convidado para proferir palestras sobre Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia. Reúne suas conferências em um volume que lá é publicado. 50 anos depois, minha orientadora de Doutorado, a professora Maria da Glória Bordini, o traduz e publica no Brasil, levando ao público outra faceta de Erico: de historiador sarcástico e perspicaz, que se coloca na posição de grande leitor para falar da literatura de seu país a estrangeiros.

Ademais, de suas andanças por México, Estados Unidos, Israel, Grécia, nasce um novo seguimento na sua produção: as narrativas de viagem. Nelas, descreve minuciosamente os lugares visitados, bem como alerta para os problemas sociais que presenciara, como a má distribuição de renda, por exemplo.

Suas experiências no exterior também serviram de motivação para ampliar o espaço compreendido por seus livros. E, assim, escreve O Prisioneiro, baseado na Guerra do Vietnã, nos desatinos da violência e do racismo, e O Senhor embaixador, cujo enredo evidencia a dominação norte-americana e suas consequências para as repúblicas latinas.

Na sua terceira estada nos Estados Unidos, de 1953-1956, assumiu a direção do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana. Por essas razões, Erico é um escritor-chave no início de um processo de abertura do romance brasileiro para o cenário mundial. Ele faz parte da geração que viveu e produziu sob o impacto do conflituoso período entreguerras – com a ascensão do fascismo e do nazismo – a grande Depressão, a Guerra Civil Espanhola, a ditadura do Estado Novo no Brasil, a Segunda Guerra Mundial, o Golpe de 1964, a Guerra Fria, o Imperialismo Norte-americano, o Pós-colonialismo, entre outros. Esses fatos são refletidos ou subentendidos em sua produção literária. Reduzi-lo, dessa forma, a escritor regionalista, ou escritor “menor”, como alguns críticos o denominam por não fazer experimentos literários, é inadequado porque ele foi muito além, isto é, desvelou os maiores problemas humanitários, abarcando diversas realidades, tempos, culturas, paradoxos, isto é, um ícone de seu contexto e peça fundamental para entendermos nossa conjuntura. Nos questiona, nos leva à reflexão, e ao maior bem que a Literatura nos proporciona: o exercício da empatia.

Seu último romance, Incidente em Antares, culmina com chave de ouro sua maturidade literária, apostando numa alegoria, ou romance de realismo fantástico, que versa sobre as consequências da censura e do sistema político autoritário que ceifa a liberdade e força ao esquecimento de fatos pertinentes.

Ainda escreveu sua biografia, dois tomos denominados Solo de Clarineta, o segundo inconcluso devido ao seu falecimento, em 1975, nos quais podemos acessar o panorama de sua vida, de sua vasta produção e de sua evolução como escritor. Apesar de sua modéstia em se autodeclarar, quando atacado pela crítica, como apenas “um contador de histórias”, Erico foi perspicaz na arte de se comunicar com as mais diversas camadas sociais, oriundas de várias estâncias do planeta. Sua popularidade lhe rendeu elogios, mas também severas ressalvas pelos analistas de textos, ou antipatia pelo seu sucesso e por sua extrema capacidade empática.

Ao longo do desenvolvimento do meu projeto de Doutorado, cujo objetivo geral era a análise de toda produção romanesca do autor e como o esquecimento tece os enredos, modifica fatos e personagens, foi possível comprovar os dados supramencionados. A exegese de cada narrativa mostrou, com clareza, a dimensão histórica, social e humanista de Erico Verissimo. Ao fazer, como parte do cronograma de tese, pesquisa no Acervo Literário do autor, localizado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, descobri narrativas inconclusas, esboços de romances e contos, correspondências, fichamentos de obras filosóficas e sociológicas, provando, mais uma vez, a capacidade intelectual e o comprometimento social do escritor. Erico Verissimo foi um homem de seu tempo, com exímio conhecimento do passado e visão do porvenir, um grande leitor, um intelectual, um diplomata que soube fazer interlocução com outros países, sem nunca perder o foco na análise dos tipos humanos, das contradições de décadas marcadas por grandes conflitos. Ou, como afirma minha orientadora de Mestrado e grande nome no universo literário, Regina Zilberman, “Erico soube proceder a um corte vertical e a um diagnóstico da sociedade com segurança e sobriedade”.

Diacronicamente, sua narrativa mostra-se dialética: há uma tensão entre o cosmopolitismo e o provincianismo; o território estrangeiro e o espaço nacional; o social e o núcleo familiar; o mundo diplomático e o mundo revolucionário; o conformismo e o ímpeto; o engajamento e a inércia; a estabilidade e a mudança.

Lê-lo é necessário, homenageá-lo, muito embora, como declara em suas memórias, fosse tímido e avesso aos elogios, é crucial. Se imiscuir em seus enredos é um processo de humanização e reflexão perpétua. E aos que desejam escrever, creio que não há definição mais acertada sobre a função do escritor e sobre o poder da escrita do que a declarada por Erico em Solo de Clarineta (1995):

Sempre achei que o menos que um escritor pode fazer, numa época de violência e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões e aos assassinos. Segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do resto. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

Ou seja, um dos objetivos da escrita é mostrar o que está obliterado, iluminar os subentendidos, tornar mais clara a trajetória do leitor. Além disso, finalizo minha homenagem a Erico inquietando-nos com sua declaração a Jorge Andrade quando indagado sobre seu posicionamento: “A causa daqueles que lutam pela liberdade será sempre a minha causa”.

Senti-me honrada pela oportunidade de eleger Erico Verissimo como meu patrono oficial na condição de imortal da ALB/Canoinhas.

OBRAS CITADAS

BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto Alegre: L± EDIPUCRS, 1995.

____; ZILBERMAN, Regina. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

____. Caderno de pauta simples. Erico Verissimo e a crítica literária. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2005.

CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo: realismo e sociedade. Porto Alegre:

Editora Globo, 1976.

____. O contador de histórias. 4 ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1980.

MINCHILLO, Carlos Cortez. Erico Verissimo, escritor do mundo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1974. v.1.

_____. Solo de Clarineta. 9. ed. São Paulo: Globo, 1995. v.2.

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