quinta-feira, 28

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março

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2024

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Entre o amor e a ciência (final)

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No instante em que abria a porta da caminhonete sentiu o toque de uma mão em sua mão

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O frio intenso daquele junho que já ia a caminho fez com que Mariana, por longo tempo, permanecesse à beira do fogão de lenha. As chamas a crepitar. O aroma das achas de pinho. Recordações da infância. Os pais já haviam se recolhido ao leito. Madrugavam sempre a fim de dar conta dos afazeres do sítio. Foi para a cama só depois de haver percebido que os pensamentos já se misturavam em sua mente. Aconchegou-se no acolchoado de macia pena confeccionado ainda por sua avó. Sonhos tumultuados povoaram sua noite.

 

 

 

A imagem de Guilherme em meio a um céu sem estrelas revoluteava em seus pensamentos. Acordava e pensava na forma mais sutil de fugir pelos fundos da igreja já após a cerimônia do casamento da amiga. Em seu íntimo, sabia que não poderia vê-lo. Não estava imune ao seu olhar, ao seu sorriso…

 

 

 

 

De manhã ficou a vagar pelo terreno, quase todo coberto, agora, com a plantação da soja. Andou de canto em canto em busca de suas reminiscências. Tentava expulsar os anseios que a consumiam. Ficou feliz em saber que o padrinho de Rose era o irmão dela, médico, que fazia residência de Pediatria em Curitiba. Era solteiro e, segundo a amiga, já jogara para longe as intenções de se casar.

 

 

 

Não conseguiu escapar, após a cerimônia, como planejara. Seus pais imploram-lhe que ficasse. Seria uma ofensa muito grande aos compadres e amigos. Sabia que o seu eu lhe trairia quando sentisse Guilherme por perto. Tentara, por uma vida, enterrar aquele amor, no fundo mais fundo de seu coração. Conseguira durante tantos anos. Mas longe dele. Não sabia o que poderia acontecer se ele olhasse para ela. Se sorrisse para ela.

 

 

 

Após a cerimônia religiosa, a recepção no pavilhão ao lado. Tudo a correr na maior animação. Como era o mês das festas de São João, começaram a dançar uma quadrilha. E Walter, irmão da amiga, puxou-a pela mão. Naquelas trocas de pares durante os volteios todos da dança sente a mão de Guilherme a apertar a sua. Um frio passou pelo seu corpo. Um raio percorreu suas entranhas.

 

 

 

Tomara apenas uma taça do delicioso ponche servido. Mas parecia que havia tomado um tonel. Despediu-se da amiga e dos demais. Teria que viajar cedo para não correr o risco de perder o voo para o Rio. Pediu ao pai que a levasse para casa.

 

 

 

— Aguarde um momento, filha. É só eu terminar esta conversa aqui com meu compadre e este copo de cerveja que já vou levar você. Espere lá no carro.

 

 

 

Mariana saiu. No instante em que abria a porta da caminhonete sentiu o toque de uma mão em sua mão. E em seguida um braço que a envolvia e lhe afagava o torso desnudo. Foi o instante mágico que transformou seu corpo em uma massa gelatinosa. Aquele afago, aquele cheiro de terra umedecida. Era tudo o que ela, por tanto tempo, empurrara para o fundo mais fundo de seu ser.

 

 

 

O abraço terno e saudoso. O beijo há tanto enclausurado veio num ímpeto só e Guilherme a levou em seus braços até a caminhonete dele. Dirigia, em alta velocidade, através da estrada encascalhada. O nevoeiro já avançava na noite. Enfim chegaram no aconchego da cabana que primeiro ouviu seus sussurros de amor.

 

 

 

Era como se nunca se tivessem separado. O sol da manhã de domingo dourava os cumes da serra e esparramava-se por toda a encosta, reluzindo nos cristais de gelo que das árvores pendiam.

 

 

 

Embevecidos ficavam a olhar, através das vidraças, aquela onírica paisagem enquanto aguardavam a água ferver para passar o café. Os pensamentos de Mariana perdidos no horizonte além…

 

 

 

Ele sabia que era só chegar perto dela, abraçá-la que todo o seu mundo mudaria de rumo, de lugar. Ele tinha tanta certeza de que ela estaria ali, com ele, a olhar a campina recoberta de gelo. O leite, recém ordenhado, que um peão acabara de trazer. O pão caseiro, quentinho. Ele tinha tanta certeza de que bastaria sua presença, seu cheiro, seu hálito junto dela que ela se deixaria envolver em seus braços. E ela sabia também.

 

 

 

Não cansava de admirar a paisagem que a viu crescer. Era algo que ela conservava na imaginação em tantos dias, na distante Rio de Janeiro. Suspirou, profundamente, e precisou quebrar o momento mágico daquela manhã.

 

 

 

— Eu preciso ir, Guilherme. Uma longa viagem, à minha espera. O dever, à minha espera.

 

 

 

Mas ainda era domingo de manhã e o carinho e os afagos dele fizeram-na esquecer a viagem, o laboratório, a tese, os preás, os ratinhos. Passaram o dia a cavalgar por entre os seixos dos riachos que desciam, a serpentear, pelos aclives. Guilherme preparara tudo. Até a cesta com os ingredientes para saciar a fome e a sede.

 

 

 

E no amanhecer do outro dia levou-a para casa. Falou que iria se divorciar. Que iria estudar.

 

 

— Quero passar o resto da vida com você. E com você estarei onde quer que esteja.

 

 

Não adiantou Mariana lembrá-lo de que ele já tentara o vestibular por duas vezes. Que ele não era de se aprofundar em livros. Captava, sim, com muita facilidade, tudo o que ouvia em sala de aula. Iria, agora, frequentar um cursinho preparatório na cidade? Ela sabia que daquele rincão ele jamais sairia.

 

 

 

Levou-a, uma vez mais até Curitiba, onde ela embarcou no avião que a levou de volta para o mundo que escolhera. As lágrimas foram suas companheiras de viagem.

 

 

 

No dia seguinte e nos que se seguiram, aquele encontro com Guilherme foi se esvaindo como se uma névoa a envolvesse. Incrustava-se o dia todo, em torno de suas pesquisas, no laboratório. Alencar continuava a seu lado. Mas ela já quase não encontrava mais tempo, nem aos domingos, para ir à praia. No correr dos dias o dourado de sua pele foi se desvanecendo. Mas a sua tese ganhava corpo.

 

 

Alencar queria um noivado rápido e que o casamento se realizasse logo que ela apresentasse sua tese. Mas Mariana tinha outros planos. Já estava com tudo organizado para fazer um pós-doutorado em Harvard. Não embarcaria com uma aliança no dedo e um marido longe ainda de completar seu doutorado.

 

 

 

Apresentou sua tese no verão do ano seguinte. Seus pais, mesmo sem entender o que ela falava em sua apresentação para a banca, composta de luminares da ciência, lá estavam para aplaudi-la, para o abraço, para a celebração. A sala foi ficando vazia. Combinaram encontrar-se mais tarde, em algum local, para comemorarem o grande feito de Mariana. Ela disse aos pais que a esperassem dentro do restaurante. Um amigo iria levá-los. Juntaria suas coisas, seus papéis, o grosso volume encadernado que continha a sua tese. Com aquele calhamaço todo em seus braços dirigia-se à porta de saída quando sente o tato de uma conhecida mão em suas costas. Ali, a sorrir para ela, embevecidamente, estava Guilherme. Mesmo no calor de um verão carioca estava ele com os mesmos trajes com os quais se locomovia em sua fazenda. Só faltava o poncho. O susto, a surpresa, atingiram-na em cheio e ela quase põe ao chão o volumoso conteúdo de seus braços.

 

 

 

Ficaram por longo tempo a se olhar. Em silêncio. Até o instante em que Guilherme a alivia de seu fardo e coloca tudo sobre uma cadeira ao lado. E os braços mudam de lugar para o abraço terno, saudoso, apaixonado. Lágrimas em seus olhos. Saía de um encantamento e mergulhava em outro.

 

 

 

No restaurante, a comemoração. Os pais, alguns professores, os amigos, a equipe do laboratório e… Alencar. Quando ela entra no recinto todos se levantam, com suas taças nas mãos para o brinde. Alencar corre a seu encontro e estaca, estupefato, quando a vê entrando, abraçada a um estranho ser, bem mais alto que todos os que ali se encontravam. Com um estranho chapéu em suas costas, preso a um barbicacho em seu pescoço.

 

 

 

Ela apresentou Guilherme a todos, chamando-o de um grande amigo de infância. A comemoração estendeu-se por horas. E Mariana passou a noite com seus pais. Por aquela noite conseguira esquivar-se de Guilherme e das cobranças de Alencar.

 

 

 

Mas o amor, a paixão, foram mais fortes. E passaram ainda mais um dia juntos, a vagar pelos belos recantos com os quais a natureza veste o Rio. A tentar suprir as ânsias há tanto postergadas.

 

 

 

Partiria dentro de algumas semanas para Nova Iorque. Do aeroporto John F. Kennedy já seguiria, em carro alugado, para Harvard, em Cambridge, no estado de Massachusetts. Onde permaneceria morando por alguns anos, enquanto faria seu pós-doutorado.

 

 

 

Lá ela desenvolveu vários estudos científicos. Conseguira até dissecar o neurônio de um ratinho impregnado com uma substância por ela desenvolvida. Teve seu trabalho publicado em uma revista especializada em ciência, com a fotografia por ela captada, em sua capa. Em curto espaço de tempo era palestrante convidada para vários eventos científicos, não apenas no círculo de sua Universidade. Atravessara o território dos Estados Unidos tendo até conquistado honras na longínqua Califórnia e em Houston, no Texas.

 

 

 

 

Voltou ao Rio. Fazia parte do grupo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz. No famoso Instituto Manguinhos.

 

 

 

Estava, em uma tarde, em sua sala, afundada em estudar alguns resultados de uma pesquisa recente, quando sua secretária, esbaforida, entra.

 

 

 

— Doutora, professora, está lá em baixo um senhor que teima em subir para vir falar com a senhora. Tem uma roupa tão engraçada. Tem um chapelão nas costas e parece estar de botas.

 

 

Mariana sorriu. Só uma pessoa seria capaz de vir ao Rio com tal indumentária. Desceu as escadas a correr. Guilherme tomou-a nos braços e, ali, defronte de um grupo de funcionários estupefatos, beijou-a.

 

 

Ela conseguiu que uma amiga lhe cedesse, por uns dias, uma deliciosa casa à beira mar, no Arraial do Cabo. E para lá seguiram. Era como se o tempo em que passaram separados não tivesse existido. Parecia que tinha sido ontem aquele dia em que estiveram juntos, na Cidade Maravilhosa. Parecia que tinha sido ontem aquele fim de semana na cabana do alto das serras.

 

 

Guilherme queria agradá-la a todo custo. Foram até a beira d’água. Ele não se separava de suas botas. Usava um calção desengonçado, destoando totalmente das usuais roupas de banho de mar. Ela teve que deixá-lo a sós, a pescar, enquanto procurava uma butique, uma loja para adquirir algo mais apropriado.

 

 

Enquanto isto ele foi em busca de um presente para ela. Chegou em casa, feliz, com a surpresa que encontrara. Era um globo de neve com verdes pinheiros. Daqueles que ao se mexer faz parecer neve caindo. Ela não aguentou. Não conseguiu segurar o sorriso. Era o que havia de mais cafona na época. Fingiu ter gostado.

 

 

 

Ele até vestiu a roupa que ela comprou. Mas jamais colocaria aqueles chinelos nos pés. Sentia-se um estranho sem suas botas.

 

 

 

Tudo era delicioso. Foram dias lindos. De enlevo. De dirimir uma saudade há tanto sufocada. Encontravam os restaurantes mais típicos naquele litoral recortado da orla fluminense. Camarões, peixes, lagostas…

 

 

 

Mariana sempre soube que aquela atração que sentiam era algo quase transcendental. Não podiam se encontrar, não podiam se olhar que se jogavam nos braços um do outro. Mas a vida a dois, em todos as horas do dia e em todos os dias da semana, seria algo insuportável para ela. Naqueles dias em que ficaram juntos por tanto tempo ela conseguiu ver a dimensão da atração que sentia por ele. Enquanto ao lado dele se encontrava.

 

 

 

Acabaram-se os dias de folga e de paixão. Ela precisava voltar ao mundo que agora era o único que a apaixonava. O mundo que girava em torno de um laboratório com seus preás, seus ratinhos, suas pesquisas.

 

 

 

Guilherme retornou ao sul. Com a certeza de que jamais conseguiria levá-la para viver com ele.

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