Era um tempo em que as moças se casavam com o primeiro namorado. Ainda mais depois do primeiro beijo
Embora embevecida ainda com a erupção de uma paixão em sua vida, o mais importante para Alícia era dedicar-se intensivamente aos seus estudos. Faltavam apenas dois meses para o exame vestibular. Falava-se que no ano anterior quase quinhentos candidatos disputaram as cento e vinte vagas existentes no curso de medicina.
Antônio não se preparara para o famigerado exame de ingresso em um curso superior. Falava para Alícia que primeiramente precisaria procurar um emprego. Morava em local distante do centro da cidade, mais conhecido por várzea pelo povo em geral.
Era o caçula de uma grande família. Seu pai falecera quando era ainda criança. Sua mãe, professora. Lecionava Língua Portuguesa em um colégio público. Não demonstrava levar uma vida difícil. Embora o terno que vestia fosse o mesmo, em todos os dias andava impecável. Camisa branca com o colarinho sempre engomado. Não gostava de usar gravatas como a maioria dos rapazes daquela época.
Alícia não fazia ideia das agruras da vida dele. Se pudesse, passaria o dia inteiro ao lado dela. Mal falava algumas palavras com ele nas tardes de domingo e logo retornava para o pensionato. Era difícil para ele entender o que chamava de loucura pelos estudos.
Aproximava-se o Natal. Com medo de que acontecesse algum incidente em sua viagem de trem para casa, antecipou-a para alguns dias antes, pois o domingo era dia de folga no cursinho preparatório para o vestibular.
Era um tempo em que as moças se casavam com o primeiro namorado. Ainda mais depois do primeiro beijo. O que o mundo ao redor falaria se assim não se procedesse.
Como Antônio tão cedo não ingressaria em uma faculdade, ela estava a ruminar com seus neurônios sobre o seu futuro.
Rodeou, rodeou até que conseguiu dizer a seus pais que não faria mais vestibular para o curso de medicina. Faria mesmo para Farmácia como eles sempre a incentivavam.
— Por que isto agora, minha filha? Você tanto implorou a nossa permissão para ser médica e agora quer desistir?
Alícia não lhes contou sobre o namorado. Apenas abaixou a cabeça e inventou uma esfarrapada desculpa.
— É que são muitos candidatos e eu não me sinto preparada para passar.
Findos os dias de folga a que se propusera, no primeiro domingo do ano novo embarcou no trem com destino à cidade grande. Como as portas do pensionato eram fechadas, impreterivelmente, em todos os dias, às 6 horas da tarde, ao chegar em seu destino iria para a casa de seus tios que se localizava próximo à estação férrea. Seu tio sempre a esperava na estação a fim de ajudá-la com as bagagens.
Ao descer do trem uma surpresa. Quem primeiro, a sorrir, veio encontrá-la foi Antônio. Estavam já a se abraçar quando ela ouviu a voz do tio.
No dia seguinte, cedinho, entrou no pensionato e logo em seguida rumou para o cursinho.
Seguiram-se dias intensos de aulas e de copiar dos cadernos das colegas as aulas perdidas naqueles dias em que viajara para casa.
Já no início do mês de janeiro aumentou o número de vestibulandas que passaram a morar no pensionato. Moças vindas de outras partes do estado e mesmo de estados distantes.
O nervosismo a bailar pelos quartos e corredores. Precisavam juntar a documentação a fim de fazer a matrícula para o vestibular.
Foi então que o mundo veio abaixo. Eram mais de seiscentos candidatos a disputar as cento e vinte vagas do curso de medicina.
Antônio, quase todos os dias, às cinco horas da tarde, esperava por ela na esquina do pensionato. Alícia dizia a ele que gostaria de vê-lo com mais frequência, mas por ora seria impossível. Havia muito ainda a estudar. Ele não conseguia entender os motivos dela e, exasperado, certo dia, foi embora sem nem lhe dizer adeus.
Nos primeiros dias após o súbito rompimento, Alícia nem entendia o que estudava. Lia as anotações em seu caderno com o pensamento apenas nele. No correr dos dias com as colegas a ler alto os temas e sortear alguém para dissertar um dos pontos, Alícia retornou à razão. Envolta nos assuntos que menos sabia, aprofundava-se nos livros de biologia geral, química e física, as três matérias solicitadas para quem desejasse cursar medicina naquela época.
As provas escritas constavam de quatro dissertações sobre quatro diferentes temas em cada uma das áreas.
Os exames foram realizados no início de fevereiro. A cada três dias, uma disciplina.
No vestíbulo da Universidade Federal foram colocadas listas com os nomes dos vestibulandos, em ordem alfabética, indicando o dia, a hora e o número da sala onde seriam realizados os exames orais. O intervalo entre cada matéria era de dois dias. Havia uma banca de três examinadores para cada uma das três. E cada um a jogar as mais intrincadas perguntas a fim de perceber se o candidato havia estudado e entendido a matéria ou a decorara.
As vestibulandas seguiam um rigoroso horário para estudar e, após as refeições, uma hora de recreação em que jogavam canastra para aliviar a mente.
Alícia foi a primeira entre elas a findar os exames. Mas tinha que esperar, pacientemente, até que a turma das letras V, W, X, Y e Z as findasse para que só então saísse a lista dos aprovados.
Para dirimir a agonia da espera, passava as tardes nos cinemas a assistir todos os lançamentos do mês.
Em sua cabeça fervilhavam planos e mais planos para o caso de não conseguir a média necessária para ingressar no curso de medicina. Claro, aquela nuvem escura de cursar outra coisa passara rápido.
Imaginava ir até a estação férrea, solicitar um passe da rede ferroviária, em nome de seu pai — que era ferroviário, —com destino a São Paulo. Matricular-se-ia em um dos famosos cursinhos. Procuraria um emprego e no ano seguinte por lá prestaria um novo exame vestibular. Depois de bem instalada escreveria a seus pais contando os motivos e onde se encontrava. Tudo bem planejado. Sequer imaginava como desembarcar do trem na Estação da Luz e ir em busca de um local para morar. Em sua cabeça estava tudo muito bem delineado.
Antes de sair a esperada lista dos aprovados, eis que sua mãe chegou, inopinadamente, de surpresa, no pensionato. E no dia seguinte acompanhou-a até a Universidade.
— Pronto — pensou Alícia — meus planos foram por água abaixo.
Começou a ler a lista do número 122 para baixo. Sim, naquela época eram aprovados os que obtivessem média igual ou superior a 5. Começou a suar frio. Seu nome não aparecia. Mas sua mãe, com seus olhos de lince, encontrou-o, rapidamente, entre os primeiros colocados.
No dia seguinte Alícia e sua mãe tomaram o trem, mas não rumo a São Paulo e sim em direção ao norte do Paraná onde uma de suas irmãs morava.
Foi uma bela viagem e Alícia, desta vez, não permaneceu de olhos fechados a sonhar com Antônio, mas pode apreciar as belas paisagens que se moviam ao lado dos trilhos da ferrovia.
(continua…)