quinta-feira, 28

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março

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2024

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Conflitos íntimos de um violinista

Imagem:Arquivo

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Muitos ensaios ainda seriam necessários para que nenhuma nota soasse um milésimo de segundo fora de suas pautas

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Rolf estava já em adiantados estudos na Academia de Música de Viena quando recebeu uma carta de seu avô Franz a lhe dar notícias não muito alvissareiras.

Meu caro neto

Tenho poucas notícias a te dar. E não são boas. Meu centenário avô Gustav, que sempre foi o nosso grande alicerce, não se encontra nada bem. Resolveu sair para fora da casa em um dia em que a neve estava começando a derreter. Resvalou e ao cair fraturou o quadril. Encontra-se acamado e os médicos dizem que nada mais pode ser feito. Temem que seja acometido de uma pneumonia porque precisa permanecer o tempo todo deitado. Dizem que só assim, talvez, o osso quebrado possa cicatrizar. Talvez. Mas vai ser muito difícil. Afinal ele tem mais de cem anos.

Também não está muito bem da cabeça. Mas quer ver todos aqui antes que o seu desenlace venha a ocorrer. Quer ver a grande mesa da sala rodeada pelos netos, bisnetos e tataranetos.

Então esperamos que possas vir logo para fazermos esta reunião enquanto ainda há tempo. Vê se podes embarcar hoje mesmo.

Coloquei alguns shillings junto desta para comprares a passagem do trem que sai da WestHauptbannhof e já está funcionando entre Viena e Innsbruck. Na estação de Fritzens deves descer e é lá que estaremos a tua espera. Mas embarque hoje mesmo.

Teu avô

Franz.

A carta já datava de vários dias. Imaginou que nem daria mais tempo de encontrar o velho Gustav vivo. Mesmo assim correu até a WestHauptbannhof para ver os horários dos trens e adquirir sua passagem. O comboio daquele dia partira logo ao amanhecer. O próximo somente dali a 48 horas. E seriam mais de vinte horas de viagem até a estação de destino. Com os pensamentos entrecortados comprou o bilhete. Retornou, triste, ao pensionato. O encarregado da portaria entregou-lhe um telegrama que recém chegara. Era de seu avô a insistir que viesse logo. Gustav já quase não reconhecia mais ninguém. Mas chamava pelo seu menino que há tanto tempo já deixara para traz as paisagens da bela aldeia nas encostas da montanha.

Havia tempo, ainda, de sobra, para arrumar sua mala. Passou pela alfaiataria. Explicou ao patrão que, por motivos de doença em pessoa de sua família, ausentar-se-ia por alguns dias. Não tinha ideia de quando retornaria.

—O senhor sabe como é a vida e os costumes nas aldeias, não é mesmo senhor Rothert? Não conseguirei desvencilhar-me tão cedo. Prometo que trabalharei em dobro, quando retornar, para compensar esta minha ausência.

— Fique o tempo que for necessário, meu rapaz. Faça o desejo de sua família.

— Tenho ainda dois dias, senhor. O comboio que tomarei somente sairá depois de amanhã, bem cedinho.

E assim Rolf passou aquele dia a trabalhar na alfaiataria e à tardinha dirigiu-se à escola de Música.

Ao sair tropeça na calçada. Sentiu, mais que ouviu um sorriso que não conseguiu identificar se de complacência ou de zombaria. Ao levantar-se e erguer o rosto quase esbarrou em alguém que mais lhe parecia uma fascinação. Uma fada a seu lado a lhe sorrir de corpo inteiro. Os mais alvos dentes que vira em sua vida. Onduladas mechas de cabelo caiam-lhe pelos ombros. E o máximo que poderia acontecer. Levava em suas mãos um estojo que, pelo formato, só poderia conter um violino.

Olharam-se estarrecidos. Sorriram.

— Você… você também é violinista? — pergunta ele, de súbito, meio sem graça, por não lhe chegar à mente outras palavras para dizer àquela bela mulher estática. Como ele, à sua frente.

Continuaram embevecidos a sorrir e a se olhar.

Num repente a fascinação criou vida. E a sorrir ela continuou seu caminho. Rolf não sabia se iria atrás dela ou se dirigir-se-ia para a Academia de Música.

Passou as mãos pela roupa que ficaria empoeirada quando quase fora de todo ao chão. Ao levantar os olhos viu-a atravessar a rua e tomar uma viela. A mesma que sempre tomava para ir pata as suas lições de violino. Apressou os passos. Viu-a entrar em uma das alas laterais da vetusta Academia de Música de Viena. Suspirou, feliz. Quase não ouvia as explicações teóricas. Ficava a imaginar em qual das salas estaria ela. Naquele momento, a solar seu instrumento.

Quando as explanações teóricas findaram o preceptor convocou a todos para que se dirigissem ao auditório principal pois fariam um ensaio geral, em conjunto, com os demais estudantes presentes àquela noite. A Academia programara um grande concerto para dentro de algumas semanas. Enquanto ele e seus companheiros para lá se dirigiam, encontraram, vindo de várias direções, buliçosos grupos de músicos com os mais diversos instrumentos de corda e de sopro. Alguns portavam violoncelos, outros, cítaras, bandolins, contrabaixos, violinos, violas, clarinetes, flautas, oboés, saxofones, pistões, enfim toda uma gama necessária para formar uma Orquestra Sinfônica.

E então ele a viu. Ao lado de outros violinistas. Dirigindo-se, felizes e cantarolando, para o mesmo local. Parecia que seu coração sairia pela boca, tal a desorganização em todo o seu eu apenas em contemplá-la.

E então ela o viu. Sorriu para ele. Permaneceram, por instantes, estáticos, em seus lugares. E logo correram um ao encontro do outro.

— É aqui que você estuda? — foi ela perguntando. Como foi que nunca nos encontramos?

— Eu apenas estudo à noite — respondeu meio sem graça É que preciso trabalhar para me manter em Viena.

— Ah! Sim! Eu estudo de dia. Hoje minha turma veio até aqui, à noite, para ensaiarmos todos juntos para o grande concerto.

A conversa foi curta. Logo todos os estudantes foram chamados a fim de que tomassem seus lugares. Um grande piano de cauda, na frente, ao centro. Violinos à esquerda, violoncelos, contrabaixos e a grande harpa à direita. Mais atrás os instrumentos de sopro e bem ao fundo, um degrau acima, os de percussão.

A pianista adentra o palco e logo em seguida o maestro instala-se sobre um púlpito já ao lado do piano.

A um sinal de sua batuta, explodem os primeiros acordes da “Sinfonia em dó maior, a Grande (D 944) ”, de Franz Schubert. Com muitas paradas para acertar alguns pontos, pois era a primeira vez que todos os estudantes da Academia de Música de Viena se encontravam, juntos, para um ensaio geral.

Por aquela noite o maestro deu-se por satisfeito. Muitos ensaios ainda seriam necessários para que nenhuma nota soasse um milésimo de segundo fora de suas pautas. No programa constariam ainda algumas peças leves de Haydn e de Mozart. E, claro, a famosa Serenata de Schubert, que embora tivesse sido escrita para piano e violino, seria apresentada em arranjo especial por toda a orquestra. Seria a chamada colher de chá que as orquestras costumam apresentar após os aplausos finais.

Findo o ensaio daquela noite, o maestro recomendou-lhes que em suas horas de folga, no decorrer o dia seguinte, continuassem a ensaiar, a sós, em casa, a Grande Sinfonia de Schubert.

A algazarra foi grande quando, enfim, cada qual foi colocando seus instrumentos nos estojos. Rolf correu para perto da garota que não saía mais de seus pensamentos. Nem sabia o que lhe dizer. Queria acompanhá-la. Calculou os schillings que sobraram em seu bolso após comprar os bilhetes da viagem que faria dentro de dois dias. Imaginou que seriam suficientes para oferecer à bela dama um chocolate quente ou até um pedaço de torta em alguma confeitaria.

Saíram juntos porta afora. Nisto cresce à sua frente o vulto de um homem vestido com a tradicional libré dos cocheiros que apenas famílias abastadas possuíam.

— Senhorita Sissi, seu pai encarregou-me de conduzi-la à sua residência. Nosso coche está logo ali no outro lado da rua.

— Um momento, senhor Johannes. Logo irei.

Olhou para Rolf com olhos brilhantes. Ele não sabia que palavras dizer. Frustradas todas as suas intenções de permanecer com ela por mais algum tempo.

— Rolf! — como ela descobrira seu nome? — Não perca o horário do ensaio de amanhã às 8 horas no estúdio C.

Rolf curvou-se, tirou o chapéu e na maior elegância, digna de um nobre da corte, desejou-lhe uma boa noite de sono.

E saiu, a sós, pelas ruas de Viena, assobiando a Serenata de Schubert, possuído de extrema felicidade.

*Mais um trecho de um livro em elaboração

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