Se houve o tempo de uma destruição interna, houve também o tempo da cicatrização
Amiga,
Estou tentando, inutilmente, o encontro da palavra certa que me levaria para os céus. Estou tentando o impulso acrobático para alçar-me às esferas cristalinas.
Mas estou tentando, inutilmente, encontrar uma palavra certa para dizer o que?
Eu não conseguiria jamais colocar palavras mágicas escritas quando existe a necessidade de um diálogo comprido. Um diálogo nostálgico, vago, vagante, com coisas sérias contornando risos. Com saudade contornando o agora. Com sorrisos contornando lágrimas. Diálogo sem pausas, sem senões, sem esconderijos.
Contando a verdade da alma que anda e vagueia sozinha. Contando da poesia de onde viemos. Sem vergonha de dizer que somos os tolos sentimentais que derramam lágrimas ao menor gesto amigo.
Sem esconder, como em autopunição, atrás de uma face circunspecta, a ironia da vida, a tristeza da vida, a preocupação pela vida, pela nossa vida, pela vida do irmão que padece.
Eu não consigo espalhar palavras neste papel para romper a barreira que a falta do encontro informal vem causando. Eu sei que preciso estar entre tantos, falando de tudo. E falamos muito pouco para poucos. E fica o vazio. E com ele aquele resto total, quase inteiro, de coisas banais que se infiltram na gente.
Olho para este imenso céu azul de hoje. Projetado em verde contra ele, no espaço, a árvore tranquila, bem aqui na minha frente. Choro neste impacto comovente. E queria contar para alguém que também sentisse comigo esta beleza imensa. Passarinhos enchendo de sons o ar e depois os grilos em seu lugar.
E todos falam de coisas de um tempo que eu não tenho nem tempo para ouvir. Todos falam de coisas certas, de coisas tolas, mas o diálogo que o meu eu necessita só barreiras encontra.
Houve um tempo em que nos despojávamos de todos os nossos gemidos. De todos os nossos sorrisos.
Houve um tempo, sim. Mas este tempo o tempo esgotou. Um mundo esquisito o que nos rodeia. Um mundo esquisito que não consegue chorar com as coisas mais simples, um mundo que não sabe também compreender a grandeza que existe até no silêncio entre amigos. E chega então o tempo do vácuo, arrastando intensamente consigo os seres sozinhos ao mundo do só.
Não existe tentativa de englobar amigos velhos para um tempo novo. O vendaval, o sol inclemente e a maresia atravessam também a mente e a alma humana e encarregam-se de fustigar o pouco de bom que existe em nós. E assim percebo que a tentativa há tanto reiniciada de um novo caminhar e de novos diálogos embargados ficaram na garganta e não sei qual explicação seria a certa. Não gostaria de admitir a frustração, mas ela aconteceu. E eu não seria eu se não o confessasse.
Se houve o tempo de uma destruição interna, houve também o tempo da cicatrização. É possível que quando o temporal esteja ameaçando cair as cicatrizes doam como se fossem recentes.
Mais ainda é possível.
É possível a existência de remorsos por erros, mentiras. Mas o diálogo reiniciado existiu porque interrompido ainda não fora…
É possível, sim, a existência de remorsos. Talvez exista, mesmo, algo sufocado na garganta e o medo de que a sua vinda à tona possa arrancar todas as suas raízes, aflorando-as para um causticante sol que viria. Se assim fosse, o retorno ao diálogo jamais sucederia. Se assim fosse, a palavra amiga jamais seria ouvida novamente.
Talvez exista mesmo algo muito forte, sufocado na garganta… e o medo que um diálogo mais longo, em uma longa noite ou em um longo dia faça brotar erros que se foram, seja a razão maior para as conversas curtas. Curtas e evasivas.
Não, eu não estou nessa escala perturbada com aquilo que passou. A decepção direta para mim, desde que fosse conhecida apenas por mim, não teria jamais feito cindir esse diálogo. Mas existe a tristeza sentida quando outros censuram quem comigo convive.
E retornas para este diálogo com voz quebrada, trazendo tanta coisa boa, tanta coisa nova e me encontras cansada. Mas me encontras. E notaste que houve também em mim a necessidade de gritar bem alto o grito aflito, o grito rouco… notaste a necessidade de falar destas coisas todas sem sentido, sem definição, sem palavras escritas para serem colocadas. E novamente o elo foi rompido.
Agora podes ter então a prova de que eu jamais evitei alguém. Eu até procurei a amiga, a velha amiga de tantas noites insones para curtirmos o papo comprido. Não quiseste aceitar aquele meu até algum dia… alguma noite… em outro mundo… em alguma estrela…mas está aí a verdade. As horas mortas desses dias todos foram tantas e tanto tempo houve…
De qualquer forma, crê, falar contigo faz bem. E ler o que escreves, faz um bem maior ainda. Foi pena, sabes. Eu tive dois longos dias tranquilos como há muito não acontecia. Embora intercalados por uma longa noite plena de emergências.
Nesse tempo consegui encontrar meu quarto e no meu quarto muitos pedaços meus. Que eu gostaria de mostrar a ti. Encontrei até poesias que eu nem mais sabia que havia escrito. De antes dos meus quinze anos. Quem diria! Bom, ainda não escrevi o conto…
Até um dia, em qualquer estrela.
Mas lembra-te: eu não conheço erros de alguém a longo prazo.
Ariadne,
em 07/11/76
