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O Libertador da América

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Um dos motivos que me levaram a cursar Letras, me licenciando, também, em Língua Espanhola, foi o fascínio pela história dos povos latino-americanos. Além dos escritores, da cultura diversificada e das paisagens estonteantes, a atmosfera mística que sempre envolveu a lendária figura de Simón Bolívar preencheu várias horas de estudo. E, à medida que se prossegue estudando, a paixão vai aumentando, pois as informações se complementam e se clarificam. Dessa maneira, há uns quatro anos maratonei uma extensa telenovela colombiana, transformada em seriado da Netflix, que tem o nome do libertador da América e que faz jus à sua trajetória inigualável. Naquele entrementes, escrevi resenha a respeito e repensei algumas questões sociais sobre nosso continente.

Há menos de um mês, esperando um voo no Aeroporto de Curitiba, fui à livraria e o primeiro livro que “me olhou” foi “Bolívar”, cuja capa é abrilhantada por uma imponente foto do biografado. Adquiri a obra e iniciei a leitura na mesma hora, a qual, de tão fascinante, fez com que concluísse as suas seiscentas páginas em menos de três semanas.

Marie Arana compõe a biografia do indomável Simón José Antonio de la Santíssima Trinidad Bolívar Palacios Ponte y Blanco. Muito embora oriundo de família da aristocracia venezuelana, quando foi estudar na Espanha, percebeu que sua riqueza pouco valia naquela nação cujo preconceito contra os “criollos” latinos era mortífero. Lá pôde polir os ensinamentos de seus tutores da infância e voltar para seu país inconformado com as disparidades. Muito jovem, na casa dos vinte, depois de ficar órfão de pai e mãe, e recém enviuvado, inicia uma homérica jornada de libertação de seu país da exploração da metrópole europeia.

Seus intentos para lograr esse objetivo são quase inverossímeis, pois ele era destemido, incansável e de uma força física sobrenatural, conforme vemos no relato. Abdicou de sua condição abastada, na qual poderia ter uma vida extremamente confortável, análoga a de um monarca, para percorrer milhares de quilômetros pela América Latina, convocar soldados e manter-se firme no propósito de emancipar os países colonizados.

Uma característica da escrita sagaz de Marie Arana é saber aproveitar o relevo, a fauna e a flora de nosso continente e estontear o leitor com descrições dos lugares que Bolívar percorreu:

Há poucas paisagens tão magníficas ou inesquecíveis quanto a exuberância geológica que se encontra entre Huaraz e Huánuco. Os portentosos picos do Huascarán e do Yerupajá perfuram os céus e enviam suas neves derretidas para nutrir o maior rio do mundo: o Amazonas. Como uma espinha colossal, os Andes percorrem o cerne do Peru e ali se situa, como um órgão vital aninhado contra o osso, Cerro de Pasco, a mina que sustentara um império. Por volta de 1800, seus veios de prata haviam rendido à Espanha o equivalente a 12 bilhões de dólares, e uma vasta população indígena fora escravizada para desenterrar aquilo (ARANA, 2015, p.333).

Um dos aspectos mais pertinentes da biografia é que, apesar de Bolívar ser um homem com traços endeusados, a escritora evidencia, também, suas fraquezas, seus equívocos e as inúmeras dificuldades que enfrentou, como vemos:

Só podemos imaginar os horrores desse êxodo trágico. Com a capa puxada rente ao corpo contra o aguaceiro, Bolívar observava seu povo seguir sem poder lhe proporcionar esperança ou consolo. Em três anos de guerra, passara da posição de um plutocrata adulado para o de um militar calejado; deixara de dormir em uma cama dourada para passar as noites em uma rede improvisada. Seus cabelos estavam compridos e sua barba estava crescida, mas apesar da fisionomia hirsuta as depressões escuras de seu rosto eram bastante evidentes. Com toda energia que nutria seu desígnio, estava debilitado de corpo, sofrendo de hemorroidas, suscetível a febres, fraco do estômago. Tinha, no entanto, uma visão obstinada. Não podia admitir nenhum pessimismo. Se havia momentos em que a visão de um solo ensanguentado o levava a se perguntar se sua guerra de ideias valia o desolador sacrifício, Bolívar jamais dava a saber. Mantinha os olhos firmes no sonho (ARANA, 2015, p.172).

Tão logo inicia a libertação dos países da dominação espanhola, percebe os desafios vindouros: como falar em liberdade sem abolir a escravatura? Que sistema governamental vingaria nas ex-colônias? Destarte, decreta que libertará todos os negros.

Porém, os problemas se avolumam. Bolívar iniciara o processo emancipatório dos países e dos escravos. No entanto, precisaria de muito planejamento, força laboral e tempo para instruir a população e prepará-la para um novo sistema de vida, o qual não deixaria nenhum estrato social marginalizado. Ou seja, se deparou com as seguintes questões: o que fazer com os ex-escravos que eram lançados às ruas? Como implantar uma democracia? Como unificar a América e torná-la a Grão-Colômbia?

 Nesse ínterim, fez muitos inimigos, especialmente os que se beneficiavam com o sistema escravocrata e colonial, ou aqueles que não se adaptavam com o novo contexto. Também houve muito carnificina ao combater com o exército espanhol em cada país que libertou, mas que também dizimou boa parte da população: Venezuela, Colômbia, Equador, Panamá, Bolívia e Peru.

Ademais, a biógrafa também descreve as atitudes contraditórias de Bolívar que, mesmo sendo bem intencionadas, serviram para desmoralizá-lo e causar o enfraquecimento de seu sonho. Um exemplo é que, não obstante ter se inspirado nos ideais Iluministas, que rechaçam qualquer autoritarismo, ao perceber que, naquele momento, seria praticamente impossível a unificação da América, se aproxima dos preceitos ditatoriais:

O que o preocupava agora que a tarefa tinha sido cumprida era a inegável evidência de que seu povo não estava preparado para a democracia. Ao contrário, carecia com urgência de um governo vigoroso, impositivo. Trezentos anos de injustiça e dez anos de guerra infernal tinham feito daquele povo uma nação de beligerantes [...] Bolívar concluiu que a Grã-Colômbia somente era governável por uma mão forte (ARANA, 2015, p.279).

Ele não atingiu o sonho da unificação e da equidade dos cidadãos latinos. Enquanto viveu, presenciou a briga entre os países que se mostraram tão xenofóbicos quanto a Espanha fora, e:

Por um longo tempo ficariam em situação bem pior do que tinham estado sob as leis espanholas. A escravidão, que Bolívar tratara de erradicar com empenho, fora substituída por outras formas de subjugação; os criollos haviam se apropriado do mando espanhol. As Américas que iam surgindo aos olhos horrorizados de Bolívar eram feudalistas, separatistas, militaristas, racistas, dominadas por caudilhos que buscavam manter as massas ignorantes no obscurantismo e sob intolerante controle [...]. Isso não era o mundo avançado que o Libertador tinha imaginado (ARANA, 2015, p.418).

Dois séculos depois da emancipação da Hispanoamérica, a sociedade justa que Simón Bolívar idealizara ainda não foi concretizada pois a mentalidade colonial ainda persiste, os latifundiários ainda comandam, e a desigualdade, em suas diversas ramificações, segue vívida. Ele foi o precursor de um novo estilo de vida e nos deixou o legado de exigir e executar a equidade todos os dias. Sempre!

(ARANA, Marie. Bolívar. O Libertador da América. São Paulo: Três Estrelas, 2015).

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