quinta-feira, 25

de

abril

de

2024

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As angústias de uma viagem

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De todas as janelas cabeças afloravam para um último adeus

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Rolf ficou a olhar o coche que levava Sissi sumir na distância. Sentiu que o mundo desmoronaria a seus pés. Pelas suas contas não regressaria a tempo para fazer parte da noite especial do grande concerto de sua Academia de Música. Corria a conversa de que seria dentro de poucos dias. E ele estaria lá em sua aldeia perdida entre as montanhas do Tirol. Mas o maestro, num dos últimos ensaios, dera-lhe tantas esperanças. Algo a mais, no entanto, em sua mente ricocheteava. Ela, ela a musa encantada que aparecera à sua frente. Tinha ímpetos de levá-la para o espaço e apenas com ela ficar. E a vida o levava para longe de tudo. Para longe dela e para longe da grande noite de gala da Academia de Música.

Aquela noite foi curta para ele. O sono não chegava. Não sabia se de êxtase ou de apreensão. Preocupado pela insônia, inusitada em sua vida, resolveu deixar a cama. Fez os preparativos para a grande viagem que se iniciaria dentro de algumas horas. Com as broas e salsichas que havia comprado preparou seu früstick. Seria sua alimentação durante todo o percurso. Conferiu o dinheiro que costurou em um bolso interno de seu puído capote. Pegou a mala. E saiu na madrugada no rumo da estação de trem que distava bem uns três quilômetros do pensionato. Encontrou uma plataforma ainda vazia naquela hora. Percebeu, ao longe a locomotiva já a fumegar. Ouvia seus ruídos. O vapor a passar pelas tubulações e com característicos ruídos ser expelido para o ar, a movimentação das rodas, o leve apito que o maquinista fazia funcionar, como que avisando que tudo estava normal. O agente da estação, com seu tradicional uniforme com botões dourados e o quepe vermelho, surgiu, repentinamente, de dentro de uma das salas, dirigiu-se ao pequeno sino que ficava logo acima do banco em que ele se sentara, puxou uma corrente e fez soar algumas tênues badaladas. De imediato ouviram-se três apitos longos, fortes e consecutivos emitidos pela grande máquina que começava, ao longe, a se movimentar em direção à gare.

Percebeu que a hora do embarque chegaria em breve. Dirigiu-se à portinhola do guichê de passagens para validar a sua. E ficou a andar pela plataforma que àquela hora começava a se encher de gente. O burburinho já era grande. A locomotiva trouxera em seu bojo uma interminável fila de vagões de vários tipos. Ficou a observar os ferroviários a empurrar compridos carros de ferros com grossas rodas na parte da frente, carregados com grandes volumes. Entravam com eles dentro de alguns destes vagões, através de uma grande porta central. Correndo saíam e já voltavam com outras cargas. Quando nada mais cabia naquele bagageiro, começavam a transportar os produtos para outro. Também percebeu um veículo com pintura diferente. Nele alguns funcionários, que trajavam um uniforme com outras cores, empilhavam sacos e mais sacos de aniagem com o emblema de uma companhia que era encarregada de fazer as entregas postais. Era o carro-correio.

Distraído a observar toda esta movimentação quase não percebeu que a plataforma já se encontrava locupletada de pessoas de todas as idades e com os mais variados tipos de vestimenta.

De repente ouve uma melodia solada por vários violinos. No extremo oposto da estação vê um grupo de ciganos a solar suas plangentes canções. Vinham de alguma região da Hungria — segundo comentários que ouvira —, na véspera, em um barco, pelas águas do Danúbio. E ali se encontravam com a esperança de ganhar alguns trocados, fazendo o que melhor sabiam fazer. Alguns tachos de cobre amontoavam-se aos seus pés enquanto as mulheres percorriam a gare oferecendo seus serviços de pitonisa.

Quando ele se aproximava dos ciganos violinistas foi atraído por um olhar um pouco além. Seu coração deu um salto. Não era possível. O sol nem havia raiado ainda. Como ela conseguira chegar ali?

Correu ao seu encontro, quase derrubando seus pertences. Ela abanava as mãos. Em uma delas um grande envelope branco.

— Senhor Johannes, faz o favor de pegar os pertences do senhor Rolf para levá-los até o carro em que ele viajará, enquanto eu explico em que estação ele deverá entregar esta carta para a minha amiga que lá estará esperando.

Correram ambos pela plataforma enquanto o cocheiro se envolvia com as bagagens de Rolf.

— Foi o que me ocorreu ontem à noite, em casa — foi ela explicando a Rolf — disse a meus pais que um amigo viajaria bem cedo e poderia levar uma carta e uns recortes de jornais para uma amiga que estudou comigo e que mora em uma das cidades por onde o trem passará. Que eu já enviara a ela um telegrama e que ela estaria esperando na estação. Claro que aqui dentro há uma carta e um maço de recortes de jornais, Mas é uma carta para você. Só assim consegui convencer meus pais a me deixarem vir. Eles até insistiram que o cocheiro poderia trazer. Mas eu retruquei. Disse a eles que este homem jamais conseguiria explicar como é a minha amiga. E assim aqui estou. Com vontade de embarcar contigo neste trem e seguirmos juntos rumo ao infinito e nunca mais voltarmos.

Conseguiram despistar o cocheiro e rapidamente embarcaram no vagão em que Rolf seguiria. Mal entraram na cabine, ainda vazia, abraçaram-se ardorosamente. E o beijo primeiro aflorou em seus lábios como um sublime néctar a selar um imorredouro amor.

O ruído de passos e a algaravia de crianças tirou-os do enlevo. Bem a tempo da chegada do cocheiro, suando já, com as bagagens de Rolf nas mãos.

Últimas recomendações de boa viagem e de procurar a amiga que estaria na estação com uma placa com o nome dele nas mãos. Um sorriso e um simples aperto de mão foi o adeus. Logo, lentamente, o comboio afastava-se e da janela do trem jogou um beijo que a brisa do amanhecer levou até ela. Ainda a viu, na distância, a entrar no coche. Sentou-se e ficou com o rosto colado na vidraça, sentindo seu perfume e o sabor de seus lábios a queimar-lhe as entranhas.

Os demais passageiros acomodaram-se em seus lugares. Da plataforma mãos acenavam despedidas. De todas as janelas cabeças afloravam para um último adeus. Infinitas recomendações de mães para filhos que partiam.

Soam na estação as badaladas do sino emitindo a ordem sonora de partida. Com um pé ainda na plataforma e outro já no primeiro degrau de um dos vagões, o chefe de trem dá o último apito. O maquinista responde fazendo soar os ruidosos silvos característicos de veículos movidos a vapor d’água. Movimentam-se as manivelas que fazem a locomotiva rodar, de início, lentamente, sobre os trilhos.

Enquanto o trem acelerava sua marcha, acelerava-se o coração de Rolf. A saudade em rever os seus acumulava-se dentro dele. Saber que logo estaria junto deles era o consolo a cimentar a tristeza do adeus.

Queria admirar a paisagem dos arredores de Viena, dos bosques ao longe. Mas o cansaço e o sono eram mais fortes e o venceram. Não sabe quanto tempo dormiu. Uma necessária manobra em uma das estações de parada obrigou a locomotiva a fazer uma brusca freada o que fez Rolf acordar sobressaltado. Não se localizava. Tentou abrir os olhos, Com dificuldade conseguiu. O sono ainda o dominava. Passou as mãos sobre eles. E nesse instante ouviu uma risada cristalina. A menina sentada à sua frente ria para ele. Cutucou-o com as pontas dos dedos e rindo muito, ainda, falou para ele:

— Eu vi vocês se abraçando….

Os pais da menina foram já mandando ela ficar quieta e não incomodar o moço.

— Mas eu vi. De verdade, eu vi.

E continuava a rir.

Rolf falou aos vizinhos de cabine que não se preocupassem com as brincadeiras da filha.

— Coisas de criança. Realmente, eu abracei minha noiva. Vou ficar algum tempo longe…

A conversa continuava. Já queriam saber quando seria o casamento. Queriam saber tudo sobre sua vida. Um colóquio interminável. Dentro dele uma tempestade com escuras nuvens a lhe tumultuar a mente. E suas elucubrações cresciam de instante a instante. Ficava a confabular com os seus santos. Ou demônios, talvez.

As crianças entraram na cabine alguns segundos antes do cocheiro. Se elas viram a cena do beijo ele também viu. A esta hora aquele homem já teria feito o relato completo e aumentado aos pais dela. Deve estar passando por um inferno dentro de casa. E tudo pela minha estúpida falta de controle. Mas ela também me abraçou. Ela também me beijou. Jamais me perdoarei se acaso transformei a vida dela em um inferno.

Imaginou passar um telegrama. Endereçado à Academia de Música. Naturalmente. Para a casa dela é que não poderia. Nem que quisesse. Não sabia nem em que rua ela morava. Mas o tempo de parada nas estações era tão curto que acreditou não ser possível. Falaria com o chefe de trem logo que ele passasse para conferir os bilhetes.

O chefe de trem foi solícito. Deu-lhe um formulário para redigir algumas palavras e recebeu o pagamento pelo serviço. Prometeu entregar ao telegrafista já na próxima parada.

Em poucas palavras ele pedia que ela lhe respondesse se tudo corria bem. Se tudo estava bem com sua família. Que enviasse a resposta para a estação de Fritzens.

Ficou mais calmo ao saber que já na tarde do dia seguinte teria resposta para as suas angústias.

E viajou feliz vagando entre vales, desfiladeiros, viadutos e picos de montanhas que já naquela tarde começara a deslumbrar.

(Mais um trecho de um livro em elaboração.)

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