terça-feira, 23

de

abril

de

2024

ACESSE NO 

Amor sem fim…

Últimas Notícias

- Ads -

Chegaram à solitária cabana que aconchegaria seus corpos durante o tempo da nevasca

- Ads -

A jornada através das estepes nevadas fora longa. O trenó, puxado pela esperta e adestrada matilha vencia a duras penas o caminho, orientada mais por seu faro e treinamento que pela voz e mãos do velho condutor.

Aconchegados em grossas peles de urso, com gorros e luvas nem o sibilante vento que cortava o espaço lhes tirava o sorriso que traziam dentro da alma.

Chegaram à solitária cabana que aconchegaria seus corpos durante o tempo da nevasca. Uma única peça. A enorme lareira ao fundo com o crepitante fogo que a tudo iluminava. Sobre um chão de pedras lisas, grossas camadas de pele de peludos animais. O mesmo adorno pelas paredes e teto.

O rutilante vinho servido nas taças que cantavam. E o amor que os dominava mais fez reluzir a noite que os cercava.

O acordar foi brusco. O frio era intenso. Sentou-se num assoalho de madeira cheio de frestas. Olhou ao redor. Paredes esburacadas. No velho fogão poucas brasas entre cinzas. Sobras do parco fogo que fizera com gravetos encontrados pelo caminho. Estava só. E o amor? Sumira na noite enregelada. Sumira junto com os seus sonhos.

Sobre a chapa um enferrujado bule. Não encontrou nem restos de alguma erva para fazer um chá. Nem pó de café para um gole que lhe traria de volta a lucidez.

Ardência nos olhos, corpo gelado, boca gosmenta, língua a parecer uma lixa, cabeça a latejar. Não tinha ideia de como chegara àquele tugúrio tão distante de tudo. Não via uma estrada por perto. Nenhum ponto conhecido ao alcance de sua obnubilada, ainda, visão.

Caminhara tanto a esmo, sem rumo, depois de haver entendido que a separação se fazia inevitável. Para sempre. Perdeu-se pela estrada. Olhou ao redor. Não poderia ter chegado ali com suas próprias pernas. Onde deixara o carro?

Lembrava-se apenas de haver entrado em um restaurante da beira da estrada. A dona falou-lhe de várias iguarias deliciosas para comer. Pediu apenas uma garrafa de vinho. E depois mais outra. E outra mais.

Precisava de água. Muita água. Água para jogar em seu rosto. Água que serenasse a mente. Água que serenasse a alma. Nada dentro da casa abandonada que lhe servira de abrigo em gélida noite de trevas. Do lado de fora encontrou um tanque com uma enferrujada torneira. De onde nem uma gota saiu. Apesar do frio, que a tudo enregelava na manhã sem sol, agachou-se e mergulhou as mãos em meio à folhagem branquinha de gelo. Passou-a pela face. Esperou um pouco que os brancos cristais derretessem em sua boca. Apesar do frio foi algo a mitigar sua sede, a refrescar a ardência de seus olhos.

E agora? Que caminho tomar? Encontrou as marcas de seu calçado em múltiplas curvas entre as árvores que o inverno desnudara. Seguiu suas próprias pegadas. Foi longa a caminhada até encontrar uma estrada. Na névoa que ainda encobria a manhã vislumbrou as sombras de um carro com as rodas de um lado dentro de um valeiro.

— Então foi isto — pensou— o carro não andou mais e saí à procura de algo ou de alguém que me ajudasse…

Abriu a porta. Entrou. Tudo estava lá como se lembrava da véspera. Ligou o toca-fitas. Cochilou a ouvir as melodias que tantas horas de sonhos ouvira nos braços do Amor.

Sonhou. E nos sonhos a cabana em meio à neve voltou a enevoar sua mente. Estava em meio às peles, defronte a uma ardente lareira num envolvimento sublime quando ouviu, muito perto, o ronco de um grande urso. O sol a anuviar seus olhos já sorria alto no céu. O ruído era o de um trator. Feliz em ver e ouvir vida por perto, correu para o meio da estrada a abanar um lenço, pedindo socorro.

Livre da valeta onde se engalfinhara tomou o rumo de sua casa. Suspirou profundamente. Sentiu o abandono de tudo. O vazio entrou junto. Nem um banho e nem um café conseguiram findar a desolação. O telefone ao canto. Mudo. Solenemente preto e mudo. Ligava para o amado número que já cantava dentro de sua memória como se fora uma canção de ninar. Desligava antes de findar a ligação. Medo de ver seu amor envolto em mais problemas.

O amor morava em uma vila distante, em meio às serras longínquas. Raramente chegava até a cidade. Encontravam-se nos mais estranhos espaços, ao longe de olhares curiosos.

Naquela manhã nada tentou produzir em seu quotidiano trabalho. A vida fluía também sem sua presença. Acomodou-se na velha poltrona. Ligou a aparelhagem de som. Um toca-fitas de rolo lhe proporcionava três horas contínuas de escolhidas melodias. Mergulhou ao som da saudade.

Viajou para o dia do primeiro beijo. O carro parado em um perdido pontilhão estendido sobre um riacho cantante. Foi súbito. Fora um enlevo. Fora puro amor depois de tantas luas em que fugira, mentalmente, deste encontro. Sabia que depois do primeiro beijo jamais deste amor se desvencilharia.

Sentou-se na velha amiga poltrona que tanto sabia de sua solidão, de sua saudade e mil planos começou a tecer.

Logo seu amor voltaria. Saberia onde encontrá-lo. Em uma noite de luar começou a dar voltas em torno daquele canto encantado. No toca-fitas melodias que eram hinos de amor, um chamado ao amor. Um quadrilátero iluminado surgiu no breu da noite. E o amor lá a sorrir. E pela noite uma vez mais singraram sem parar.

Eram duas almas que se encontraram após séculos de um procurar insano. Tornara-se difícil, quase impossível, esta união no agora em que se reconheceram após perambularem, na distância, pelos mais estranhos mundos.

Sabia apenas que não poderia repetir aquele desvario de muitas noites atrás. Desvario em que tentara uma fuga nos braços de um vinho que o fizera viajar para outros mundos. Parecia que tinha vivido a doçura de um sonho em meio a montanhas de pele de urso, defronte a um ardente fogo, em carícias com seu amor.

Seu pensamento voava por todos os cantos do mundo. Encontraria um recanto onde pudessem viver felizes para sempre. Fechava os olhos e sonhava. Ora imaginava-se numa ilha tropical. Numa ilha em meio ao oceano do outro lado do mundo. Ora a viver em um iate a vagar pelas mais estranhas paisagens.

Estava com o pensamento a voar quando sentiu um súbito tremor que fez tilintar os cristais, que balançou o lustre no alto, que moveu todas os quadros que emolduravam as paredes.

Foi então que olhou melhor para a que estava à sua frente. Uma gravura de Gauguin fora ao chão! De tanto dedicar-se à arte da pintura sua casa tinha as paredes repletas de quadros de artistas dos mais variados movimentos. Dos impressionistas aos clássicos. Dos modernistas aos da arte concreta.

Por que Gauguin? Seus olhos brilharam. Um corisco passou em sua alma. Venderia toda a sua coleção e todo o seu acervo. A Polinésia seria o seu destino.

Talvez um ano já tivesse se passado. Embrenhou-se floresta adentro até a vila onde seu amor vivia com os seus. Embarcaram juntos para aquela viagem de sonhos. E ficaram a viver à sombra das palmeiras, em meio a tintas e pincéis, em meio a seus enlevos, a saborear os frutos do mar e as delícias da terra que só os polinésios sabem preparar.

- Ads -
Olá, gostaria de seguir o JMais no WhatsApp?
JMais no WhatsApp?