sexta-feira, 29

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março

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2024

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A longa jornada a caminho de Dublin

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Do alto perceberam luzes no vale, ao lado do que parecia ser um pequeno riacho

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A jornada era árdua. Andavam por caminhos pedregosos. Desviavam-se da estrada principal. Um viajante solitário com quem cruzaram alertou-os sobre possíveis emboscadas, aumentando-lhes as preocupações.

Quando a noite se aproximava começaram a procurar algum sinal de luz, um ponto onde pudessem passar a noite. O vento começara a soprar mais forte e não tinham coragem de dormir ao relento. O cavalo cansado, andava tropegamente arrastando o carreto que rangia em cada nova colina que encontravam pela frente. O céu começou a escurecer com negras nuvens a prenunciarem uma tempestade. Não demorou para que a chuva viesse em forma desmesurada. Na tentativa de continuarem a subida da colina em frente desceram do carreto e com suas já minguadas forças empurravam o carreto. Uma empreitada difícil. Enterravam os pés na lama da estrada. As rodas afundavam no lodaçal. O cavalo já não dava conta de tirar as próprias patas do lugar. Levaram quase mais tempo para chegar ao topo do que tinham levado desde a sua aldeia até ali.

 Do alto perceberam luzes no vale, ao lado do que parecia ser um pequeno riacho. Conseguiram lá chegar. Pela porta entreaberta da estalagem um rasto luminoso estendia- -se pelo pátio. George animou-se e foi conversar com um homem de longas barbas com um cachimbo antigo preso em sua boca. O velho fulminou-o com seus olhos quase como de um tigre e resmungou qualquer coisa incompreensível, sem tirar a pipa dos lábios.

De pronto apareceu um moleque que já foi perguntando se eles queriam apenas comer ou ficariam para pernoitar, dizendo-lhes o valor que já deveriam entregar ao velho, adiantadamente.

—Sabe, moço, os tempos andam difíceis… E muita gente já passou por aqui, comeu, bebeu, dormiu e no dia seguinte, antes do dia raiar picavam a mula, o senhor me entende, né? Então agora é só pagando adiantado.

O velho ao lado, apenas meneando a cabeça, em sinais afirmativos. Não tirava o cachimbo da boca.

—Está bem. Só que preciso tirar meus pertences do carreto e livrar o cavalo dos arreios e do cabresto. Enquanto isto minha esposa pode ficar descansando aqui dentro?

Estavam ambos com as vestes totalmente encharcadas com a torrencial chuva que não cessava de cair. E dentro o calor amigo de um fogo a estalar na lareira já lhes revigorava os ânimos.

 George saiu pela mesma porta por onde entrara. Acarinhou o velho companheiro. Sussurrou em seus ouvidos que agora ele ficaria livre das cordas e correias que o prendiam. Que poderia se fartar com uma fresca e sadia forragem. Que teriam, todos, um canto aprazível, onde passar a noite e dormir.

Retirou toda a sua bagagem do carreto para poder chegar ao local secreto onde se encontrava o seu tesouro, as únicas moedas que os livrariam da fome e do frio por algum tempo. Quando retornou para dentro da estalagem com suas trouxas o velho arregalou desmesuradamente os olhos e até retirou o cachimbo que prendia entre os dentes e, enfim, George conseguiu entender seus grunhidos.

 —Mas vocês vão ficar morando aqui? Apeou toda a mudança do carro…

—Não, senhor…

—O’ Brian, ao seu dispor.

—Não, senhor O’ Brian, apenas pretendo deixar o carreto ao relento para que as águas da chuva possam limpá-lo de toda este lamaçal que nele se encontra. Só quero um local coberto para deixar o nosso pobre cavalo. E aqui está o pagamento para as nossas refeições, nosso pernoite e para a forragem e o pouso do animal também. Esperamos que tenha uma boa bacia com água quente para que possamos também tirar esta lama de nosso corpo e de nossas roupas.

Enquanto fazia a primeira refeição matinal o velho O’ Brian, com seu cachimbo na boca, queria saber para onde estavam se mudando, naqueles tempos em que lugar nenhum era bom para os pobres filhos da terra.

—Melhor irem mais para o norte, até encontrar o porto de onde partem os navios que vão para Nova Iorque. Mas pelo que li nos jornais não é aconselhável fazerem já esta longa viagem com esta criança quase em tempo de nascer. É um risco muito grande seguir em um destes navios. Eles são chamados navios-coveiros, porque a metade não chega no destino. Já estão todos, como vocês, saindo daqui com o corpo franzino e padecendo da fome que consome o nosso país. Não resistem esta longa travessia e são chamados para juntarem-se às sereias do fundo do mar.

George olhou para Sinead e ambos ficaram quietos e pensativos.

 —Quem sabe vocês vão mesmo para Dublin e lá ficam esperando até o nascimento do bebê. Enquanto isto você pode fazer algum serviço de frete…

 Tirou mais uma baforada do cachimbo e continuou:

—Quem sou eu, um pobre velho, já meio surdo, que quase não enxerga para dar um conselho. Não saio daqui porque esta estalagem vem vindo de minha família há muitas gerações e os homens de Londres não conseguiram tirá-la de mim. Mas quase ninguém mais passa por aqui.     

Mandou o moleque ajudá-los a colocar a pequena bagagem de volta para o carreto que se encontrava ainda bem molhado pelo aguaceiro da véspera. Muita lama ainda pelo chão, mas o sol voltara a brilhar.

 Enganaram-se pensando que antes do anoitecer chegariam em seu destino. Mais uma busca estafante por um pouso. Escurecia e nada de encontrarem um local para comerem alguma coisa e descansarem. O pobre cavalo comera toda a forragem que haviam comprado na estalagem, já na parte da manhã. Era hora de alimentá-lo também.

Pararam defronte uma pequena propriedade. Bateram palmas no portão. Chamaram. Ninguém atendia. O abandono em que tudo se encontrava era um sinal suficiente para lhes dizer que ali não havia viva alma. E já há algum tempo. Não tiveram coragem de forçar a porta e entrar. Lá nada encontrariam mesmo para comer.

 Continuaram o caminho até que luzes ao longe os animou. Não havia um velho a mastigar um cachimbo. E nem um garoto vivaz que acorresse a fim de saber o que desejavam. Apenas uma lúgubre moça chorava sentada atrás de uma mesa. Quando George lhe perguntou se poderiam comer algo e ali pernoitar, em vez de responder, mais ainda chorava a jovem.

George e Sinead sentaram-se, então, também e aguardaram. Uma hora o choro cessaria. E então ela lhes contou que há quase um mês encontrava-se ali, a sós. Os irmãos tinham partido em busca de uma vida melhor em outro mundo. Primeiro o pai, que já andava doente e esquálido amanheceu sem vida em uma certa manhã. Não deu uma semana a esposa acompanhou-o para as moradas celestiais. Havia comida na despensa. Mas ela nem tinha ânimo. Já comera todo o pão que restara. E o chá que ficara no grande bule em cima de um fogão apagado.

—Ninguém mais passou por aqui e eu não sei como atender vocês. Se vocês estão com fome tem toicinho e batatas ainda boas na despensa. E deve ter chá também. Mas não sei onde se encontra. E para dormir vocês precisam arrumar um dos quartos. No corredor tem um armário com lençóis e cobertas. Façam o que quiserem. Não tenho ânimo.

George e Sinead olharam-se, meneando a cabeça, afirmativamente. E assim fizeram. Encontraram o depósito de lenha nos fundos. Fizeram fogo. Encontraram mais do que batatas e toicinho. Prepararam um jantar. Encontraram as folhas de um chá que há anos não viam. E com ele brindaram ao encontro com Cliona, a moça que, finalmente, começou a sorrir.

Cliona já queria que eles lá permanecessem para ajudá-la a cuidar da pequena estalagem. Resolveram ficar mais uns dias. O local precisava de uma grande limpeza e organização. Explicaram para a moça que eles precisavam seguir viagem. Aconselharam-na a vender ou arrendar o local. Ou providenciar alguma mulher do vilarejo que ficava próximo para ajudá-la na manutenção da herança. George ainda arrumou melhor a placa da frente, pintando-a com um colorido mais atraente.

Depois de muitos dias nesta paragem decidiram que precisavam partir. Estavam revigorados, descansados. O velho companheiro até criara mais músculos e gordura com as boas forragens e leves exercícios diários. Estavam prontos para a nova jornada.   

A senhora Tierney, uma velha amiga da família que ficara viúva pouco tempo após o casamento, casualmente aparecera para saber como Cliona estava se mantendo a sós com a velha e pequena estalagem. Foi um algo especial na véspera da viagem do casal. Ela logo se prontificou em juntar as suas tralhas todas e se mudar para o albergue. Cliona não ficaria mais relegada à sua própria sorte. A senhora Tierney não tivera filhos. Aparentava ter apenas uns anos a mais que Cliona.

 Assim, mais tranquilos, por saber que a jovem não ficaria sozinha, partiram naquela manhã de sol em direção ao destino há tanto sonhado.

*Mais um trecho de um livro em construção.

Continuação de “Nas Planícies do Eire”, publicado em 26/12/2020.





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