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A Guerra do Contestado: devastação e fanatismo

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É possível dar voz e razão para os vencidos e vencedores?

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Quais são as verdadeiras causas de um conflito bélico? É possível dar voz e razão para os vencidos e vencedores? Essas são algumas das indagações presentes na narrativa do escritor catarinense Guido Wilmar Sassi.

Após o acordo firmado entre o governo e a empresa norte-americana Brazil Railway Company, a qual construiria a estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul, inúmeras famílias catarinenses e paranaenses foram desalojadas, perdendo o direito de habitar e cultivar a terra onde residiam como posseiros. As autoridades, por sua vez, valendo-se do princípio de “Uti possidetis”, isto é, o direito da soberania estatal sob as propriedades que são habitadas, mas que não foram adquiridas, expulsam os moradores das mesmas.

Essa decisão governamental obviamente gerou revolta na população atingida, tendo gravíssimas consequências para toda região envolvida, as quais se manifestam até hoje. No enredo de “Geração do deserto”, vemos como a desapropriação de terras em favorecimento do coronelismo e do capital estadunidense, bem como a vinda de trabalhadores oriundos de outras regiões, acarretou em empobrecimento:

Gasparino Melo contou do que lhe acontecera, de como fora obrigado a vender a sua pequena serraria por quase nada, por não ter pinheiros para serrar, por não poder contratar empregados, pois a Lumber pagava mais. Contou da concorrência desleal que lhe faziam, das injustiças que sofrera, dos direitos que perdera. E a indignação dos homens foi crescendo, aumentando sempre de volume e intensidade, até que se tornou enorme (SASSI, 1982, p.122).

Além disso, o escritor nos leva a refletir sobre a devastação ambiental ocasionada pelos direitos concedidos à empresa: “- E essa porcaria da Lumber é a pior de todas. Ela é quem manda os homens brigar contra as árvores” (SASSI, 1982, p.121).

 Existiam distintas vertentes de entendimento da Guerra do Contestado. Alguns, por exemplo, seguiam os preceitos do monge São João Maria, cuja principal premonição afirma que “[…] havia de chegar o tempo do homem brigar com o pinheiro, e do pinheiro brigar com o homem” (SASSI, 1982, p.121).

Outros direcionam a culpa precisamente ao principal responsável pela conjuntura hostil:

- Foram eles que começaram a guerra, esses estrangeiros de merda, derrubando as nossas árvores. Não tem mais pinheiro, nem pra remédio. Vai ficar tudo que nem um deserto. Não vai mais ter pinhão pra gente comer no inverno. Os filhos da gente vão passar fome. Foi essa desgraçada dessa Lumber que começou a guerra dos pinheiros contra os homens... bem como São João Maria disse. Dantes eles não se guerreavam. Se a gente queria uma casa, derrubava uma árvore. Uma só! Não fazia mal. As outras ficavam de pé, mais de miles e miles. Ninguém morria esmagado pelos pinheiros, ninguém atorava os dedos nas serras. Agora... é mesmo uma guerra. Foi essa companhia estrangeira que começou (SASSI, 1982, p.122).

E foi assim que, na narrativa de Guido Sassi, o conflito se iniciou, tendo, também, como estopim, a premissa, defendida pelo monge, de que o movimento republicano em voga no Brasil era “coisa do diabo”, ao passo que a manutenção da Monarquia, e de todos os tradicionalismos, lhes garantiria uma terra santa:

Isso foi ao meio-dia. Ao anoitecer, um bando de jagunços ateou fogo nas serrarias da Lumber. Praticado o ato, muitos fanáticos, amedrontados, correram para os redutos, temerosos de uma represália. A maioria ficou, embevecida, olhando o fogaréu que se levantava para o céu. Daquela vez a árvore fora vingada (SASSI, 1982, p.122).

Porém, a luta era desigual, pois, enquanto os soldados republicanos recebiam armamento bélico, os “fanáticos” tinham, além de objetos rudimentares para sua defesa, a crença de que cada um da “Geração do deserto” teria seu pedaço de terra e, caso morto em combate, ressuscitaria.

O escritor é perspicaz ao abordar ambos os lados envolvidos na batalha, isto é, os pelados (caboclos), e os peludos (soldados do governo), e ao evidenciar que, muito embora os primeiros tenham sido massacrados e desumanamente derrotados, não houve vencedores se pensarmos que o desmatamento e a desapropriação fazem palpitar a miséria e o retrocesso mais de um século após o conflito. Por isso, o nome da obra já preconiza, isto é, uma “geração do deserto”, que pode ser entendida no sentido literal, ou seja, os herdeiros de uma terra devastada pela ganância norte-americana, ou a infinita aridez dos que esperam as recompensas prometidas aos descendentes dos que guerrearam.

(SASSI, Guido Wilmar. Geração do Deserto. Fundação Catarinense de Cultura. Editora Movimento, 1982).

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