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A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir

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Um exemplo de educação para a autonomia

As ler as crônicas do educador e psicanalista Rubem Alves sobre a peculiar Escola da Ponte, que se localiza na Vila das Aves, em Portugal, imediatamente me lembrei de um poema de Manoel de Barros:

EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA

No aeroporto o menino perguntou:

— E se o avião tropicar num passarinho?

O pai ficou torto e não respondeu.

O menino perguntou de novo:

— E se o avião tropicar num passarinho triste?

A mãe teve ternuras e pensou:

Será que os absurdos não são as maiores virtudes

da poesia?

Será que os despropósitos não são mais carregados

de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu:

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com

as crianças.

E ficou sendo.

Isso ocorreu porque o maior objetivo da escola mencionada é educar as crianças para a autonomia, e, no processo de ensino-aprendizagem, no qual os estudantes são protagonistas, a criatividade é o fio condutor. Para absorver conhecimentos, é necessário estar aberto para ver e pensar sobre aquilo que era desconhecido e, até mesmo, absurdo, como, por exemplo, a indagação do menino do poema acima. Além disso, embasar as atividades no estímulo ao pensamento crítico-analítico, como vemos:

Nenhum pensamento reclama tanto a comunhão dos olhares para fora e para dentro como o pensamento sobre a educação. De resto, a educação é isso mesmo – um permanente movimento no sentido da decantação e da intersecção desses olhares. Começamos por treinar e desenvolver apenas o olhar para fora. Durante alguns anos, permanecemos cegos para o que não existe. Só descobrimos o olhar para dentro e começamos a pressentir o que não existe quando se nos impõe ou nos é imposta a necessidade de interrogar e compreender o que vemos fora de nós. Este é o primeiro momento mágico da educação. O momento em que finalmente nos apercebemos de que há um imenso mundo para além ou aquém do mundo que espreitamos fora de nós (ALVES, 2012, p.10).

A Escola da Ponte foi fundada na década de setenta do século vinte e, por muito tempo, surpreendeu a vários estudiosos devido ao seu currículo embasado na liberdade, na independência e na colaboração entre os “miúdos”. Rubem Alves, que muito estudou e escreveu sobre metodologias e seus resultados, se sentiu estarrecido quando a visitou. Ou seja, se espantou ao ver, na prática, algo que idealizara acerca do cotidiano escolar, a saber:

O aluno é, assim, o verdadeiro sujeito do currículo – não um instrumento ou um mero destinatário do currículo. Os professores não estão no centro da vida escolar, não são o sol do sistema curricular. Estão, relativamente às crianças, em permanente movimento de translação e circunvolução, procurando acompanhar, orientar e reforçar o percurso de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal e social de cada aluno. A educação, afinal, sempre foi isso – e a singularidade do “projeto educativo” da Ponte decorre simplesmente do fato de não o ter esquecido (ALVES, 2012, p.19).

Eu tive o privilégio de participar, na escola onde leciono, de um programa que é motivado nos preceitos da Escola da Ponte, denominado “Ensino Integral em Tempo Integral”. No início, o corpo docente passou por um período de desprendimento dos arcaísmos pedagógicos que estavam enraizados para, depois, se abrir para uma nova maneira de conceber a relação professor-aluno. Análogo ao que descreve Rubem Alves:

A sabedoria precisa de esquecimento. Esquecer é livrar-se dos jeitos de ser que se sedimentam em nós, e que nos levam a crer que as coisas têm de ser do jeito como são. Não. Não é preciso que as coisas continuem a ser do jeito como sempre foram (ALVES, 2012, p.53).

E, realmente, os tradicionalismos não precisam ser repetidos ad infinitum, uma vez que, passado o profícuo período de estranhamento e adaptação, os resultados positivos de um processo pedagógico norteado pelo protagonismo estudantil são inúmeros, ou seja, alunos mais colaborativos, mais desenvoltos, capazes de discorrer sobre diversos assuntos, e, na grande maioria das vezes, autônomos para fazer suas próprias pesquisas, e tomar decisões, arcando com as consequências.

Ademais, o aspecto mais pertinente de uma escola para a autonomia é mostrar que os aprendizes têm possibilidades, isto é, dentre o rol de caminhos, estar com todos os sentidos treinados para ver o que, muitas vezes, se passa desapercebido e, assim, se destacar e inovar, ou ainda:

[…] a capacidade de se assombrar diante do banal. Tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, um ninho de guaxo, uma concha de caramujo, o voo dos urubus, o zunir das cigarras, o coaxar dos sapos, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra. Dessas coisas […] nasce o espanto diante da vida; desse espanto, a curiosidade; da curiosidade, a fuçação (essa palavra não está no Aurélio!) chamada pesquisa; dessa fuçação, o conhecimento; e do conhecimento, a alegria! (ALVES, 2012, p.68).

(ALVES, Rubem. A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. 13.ed. Campinas: Papirus, 2012).



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